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21.5.07

A DUVIDA - 73º. fascículo

(continuação)

Nunca mais voltámos a falar no espectáculo pornográfico que vimos juntos em Paris, Maria do Céu. Mas penso que, pela primeira vez, não gostaste verdadeiramente do meu gesto. A resistência oferecida, leve embora, deixou-me essa impressão. Também não sei porque o fiz, Maria do Céu. Eu sabia, por experiência própria, que era como se existisse uma muralha de vidro a separar os actores dos espectadores. Nenhum contacto seria jamais possível. E sabia serem aqueles olhares mera provocação, com o objectivo de excitar ainda mais os espectadores atraídos pela bizarria da intimidade numa montra. Enquanto caminhávamos em silêncio, e à medida que o meu furor momentâneo se esvaía, ia-me perguntando se não estava a levar longe de mais os meus zelos. Por quele andar, Maria do Céu, não tardaria a matar a zagalote as moscas a voar em teu redor. Mas que queres? Procura compreender-me, Maria do Céu. Hoje, é muito importante que me compreendas. Era superior às minhas forças. Um ciúme doentio, penso eu. Ou o desejo exacerbado de te proteger. Sabes, Maria do Céu, acho que o ciúme tem sempre a componente sexual associada, é um cio espiritual. Embora possa não ser esse, exclusivamente, o motor das suas manifestações. E, como aconteceu naquela situação, nem por um momento foi esse o meu medo.

Caminhávamos lado a lado, mas separados. Aproveitei um momento em que devíamos atravessar a rua, para pousar a mão num ombro de Maria do Céu. Uma proposta de tréguas na guerra surda por mim iniciada. Feita com ar distraído, para salvaguardar o orgulho de macho. Para não dar o braço a torcer, disse Maria do Céu mais tarde, quando lhe pedi desculpa da atitude desabrida. Jantámos ostras e mexilhões. De mil maneiras diferentes. Tendo por pano de fundo o cartaz gigantesco dum ballet de Roland Petit, com a cara agarotada da mulher Zizi em tamanho americano. Acabámos a noite no Moulin Rouge. Uma prenda de luxo para esquecer o episódio da tarde. Saímos já noite. Eu tinha-me esquecido da prudência inicial. Ao longo da rua, sobretudo depois da zona dos anúncios feéricos, as prostitutas faziam concorrência às arvores, em número. À mão, os táxis aguardavam os clientes, deles ou delas. Apanhámos um e fomos para o hotel.

(continua)
Magalhães Pinto

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