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26.5.07

A DUVIDA - 78º. fascículo

(continuação)

Entre um pastel de bacalhau e um copo de vinho - era verde - ficou aprazada, para o dia seguinte, uma visita ao bairro da lata de Brevilliers, onde quase só viviam portugueses. E já quase em fim de festa, um convite de saída à noite para um espectáculo que os turistas não tinham por hábito ver. O senhor Manuel de Finzes, presidente da Direcção e prometedor empresário do batiment, já com oito empregados de sua conta, todos portugueses, passaria pelo hotel, a buscar-me. Jantar em casa dele, antes. A mulher assaria uma pá de cabrito, bastante mais saborosa que os frangos rotis, a saber a aviário, que aqueles franceses comiam de empreitada. Claro que podia levar a minha mulher. O Miguel Tesoureiro esperar-nos-ia no caveau, para guardar lugar. Era coisa fina, mas levava muito pouca gente. Não me fiz rogado.

Fiquei alguns momentos a observar-te de longe, Maria do Céu, quando cheguei ao hotel, depois da minha ida à associação dos portugueses. Estavas sentada no pequeno lobby, a "ler" atentamente as fotografias dum Jours de France com pelo menos três meses de idade. Curiosamente, só então reparei no teu rosto aciganado, com o nariz recortado quase a direito, emoldurado pelos teus cabelos de azeviche. Eras realmente linda, Maria do Céu! Teria sido um crime se, em lugar de escolheres o Porto como destino de emigrante, tivesses escolhido França. Porque só por acaso te teria encontrado. Um acaso, que, acreditava eu, só acontece nos romances. Não te mostraste muito interessada em saber o que se passara. Naturalmente. Em Rala também havia emigrantes, alguns dos quais voltavam por ocasião das férias grandes e contavam tudo o que acontecia lá pelas Franças, ante os olhos escancarados e vagamente sonhadores dos que tinham ficado. Nem o convite para a noite pareceu espevitar-te. Posta, de repente, num mundo completamente novo, a tua atitude era puramente contemplativa. O que me agradava. Estavas ali, tranquila, sossegada, à minha espera. Fui por detrás de ti e não resisti a pousar um beijo nos teus cabelos. O teu ligeiro sobressalto fez-me sorrir. Sem querer, pensei já irem longe os tempos em que, no Borboleta Negra, um cabrito mais atrevido podia apalpar-te as nádegas, sem sequer olhares para trás. Foi como se te quizesse dar um prémio por isso, que te levei à Place du Tertre e fiz pintar o teu retrato a um grego barbudo e já velhote. Conseguiu capturar, com nitidez, o brilho dos teus olhos. Essa pintura, cela eterna do teu rosto de menina, Maria do Céu, foi a única coisa que quiz que viesse do meu apartamento da Ribeira para aqui. A única não. Também quiz que me trouxessem a máquina de escrever, porque tinha tudo isto para te dizer. Mas a máquina podem levar, assim acabe de te escrever. O teu retrato, pintado por um grego barbudo e já velhote, que conseguiu capturar, com nitidez, o brilho do teu olhar, esse não... Não vou deixar que mo levem... O brilho desses teus olhos tão lindos, não...


(continua)
Magalhães Pinto

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