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31.5.07

A DUVIDA - 83º. fascículo

(continuação)

XV

Quartier Portugal era um nome pomposo demais para aquele amontoado de barracas de madeira e lata, pedaços de espuma de borracha sintética a fingir de vedação das frinchas enormes. Humildemente, o bairro de lata escondia-se num pequeno vale, duas colinas a servirem de púdicos cortinados de pobres envergonhados. Ao longe, divisavam-se os enormes caixotes da habitação social, reservada aos operários franceses e a alguns emigrantes mais sensíveis às pequenas comodidades, proporcionadas por sessenta metros quadrados de chão de madeira e coberto. Conforto desmedido, quando comparado com o revestimento de cartão canelado do chão das barracas. Na maior parte dos cubículos, viviam apenas homens, aos três e quatro por cada.

Era domingo. De manhã. Apanhei muitos em casa. Alguns entretidos na confecção do almoço, numa portuguesíssima máquina a petróleo, barulhenta e encardida. Falei com muitos. Dum modo geral todos tinham trabalho e ganhavam o que, comparado com os salários "de lá", eram autênticas fortunas. Na sua maior parte, enviadas religiosamente para casa, em cada fim de mês. Antes do dia cinco. O banco demorava uns três dias para fazer a transferência e convinha o dinheiro chegar à conta antes do senhorio bater à porta. Tomei nota para ir ao banco, mal chegasse a Portugal, perguntar se pagavam juros por esses três dias de dinheiro retido. Apenas um, o Figueira, encontrara modo de se não ralar muito. Também não tinha deixado família a sustentar, lá. Lá e cá eram advérbios de existência permanente naquelas bocas. O pai já morrera e as duas irmãs sustentavam a mãe. Lá. Ele, o Figueira, só tinha que se desenrascar. Cá. Seis dias depois de ter arranjado trabalho, cá, dera baixa por doença; e, desde há quatro anos, estava por conta da Sociale de cá. Não precisava enriquecer, porque não tencionava voltar para lá. O decurso, não muito extenso, entre o levantar e o deitar, escoava-se, ao ritmo dos cálices de pastis, no bistrot da alentada madame Francine. Houve mesmo maldizentes a segredarem-me, com ar malandro, que a madame trocava, ela por ela, o pastis e extensas noites de fantasias eróticas, nas quais o Figueira seria mestre.

(continua)
Magalhães Pinto

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