(continuação)
O Miguel Tesoureiro tinha tanto de belo como de calado. Quase não abriu boca durante todo o serão. Nem mesmo quando, aproveitando um intervalo da cantoria, procurei saber como ia a vida da associação. Parecia ausente, a passear constantemente o indicador direito por sobre a borda do copo de beaujolais, olhos fixos na mesa de madeira tosca. Mudei o rumo da conversa e quiz saber de onde era, como tinha vindo parar a França, a sua ocupação, se pensava regressar. Não tive maior êxito. Vagamente, fiquei a saber que, apurado nas sortes, se tinha escapulido antes da incorporação, a salto, fugindo à guerra. Passara um mau bocado. Até fome. Era melhor nem falar nisso. Acabei por eleger por interlocutor o casal de Finzes.
O Manuel de Finzes estava em França há quase vinte anos. Legalmente, que há vinte anos ninguém vinha a salto. Ainda o cheiro da guerra se misturava com o dos pinheiros da Flandres. A carta de chamada viera por um tio solteiro, aventureiro, cujas relações do comércio negro do tempo da guerra - havia mesmo quem dissesse ter servido de correio para assuntos mais secretos - lhe tinham facilitado a domiciliação no imediato pós-guerra. Insatisfeito com a vida de servente agrícola, na quinta do morgado lá da terra, tinha abalado cedo para Lisboa, à procura de melhor sorte. Por lá fizera um pouco de tudo. Acabara a vegetar na construção civil, que maior satisfação lhe não dava. Tentara emigrar para Angola. A propaganda da exposição colonial tinha-lhe aguçado os anseios de enriquecimento. Correra seca e meca para juntar os papéis necessários, sabe lá como era marrante! Nunca cheguei a entender, naquele tempo, se Angola era ou não era Portugal, também. Foi precisa a guerra para sabermos que aquilo é nosso. Cheguei a pensar emigrar para a Venezuela. Era mais fácil. Mas a carta salvadora do tio, a oferecer-lhe o emprego, chegara no momento certo. Fora à terra, despedir-se dos pais e dos seis irmãos e prometer à Ana que viria daí a uns dois anos buscá-la. E metera-se no combóio, para uma viagem de quase três dias, com mudança em Paris. Sem saber uma palavra de patois, só queria que visse! Aconteceu-me uma boa aqui em Paris, onde comi, num restaurante da Gare du Nord, ainda me lembro da cara palerma do garçon! Não quiz dar parte de fraco, quando ele me apresentou a carte. Eheh!... Sabia lá eu o que era vianda nessa altura! Olhe, fui apontando a dedo o que queria manjar. O tipo ainda hoje deve estar a pensar que eu era mudo! Eheh!... O riso fazia brilhar ainda mais, naquela meia obscuridade, os dois olhos pequenos mas muito vivos. Começara a ficar assustado quando viu colocarem-lhe à frente pratos e mais partos, uns vazios, outros com molhos. No fim, tinha comido amêijoas cozinhadas de três modos diferentes. Embrulhara a fome no orgulho lusitano salvaguardado e quase ficara sem a meia dúzia de francos trazidos para a viagem.
(continua)
Magalhães Pinto
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