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20.5.07

A DUVIDA - 72º, fascículo

(continuação)

Acho que não te devia ter feito ver aquele espectáculo pornográfico. Mas fi-lo conscientemente, como se fosse algo tido por absolutamente necessário. Pensando bem nisso, hoje, creio que o meu desejo era que, face ao espectáculo, te não envergonhasses de toda a tua vida anterior. A modos duma vacina fora do prazo de validade da qual esperava eficácia. Parece-me assistir ainda ao teu ar de espanto, ao veres desfilar, diante dos teus olhos arregalados, cenas familiares, mas conhecidas apenas da intimidade que um homem e uma mulher sabem criar só para si. Nem por um momento deste fé que, para mim, todo o espectáculo foste tu. Via o teu olhar saltar da crueza do palco minúsculo, espelhado a toda a volta, em ângulos propícios à visão total, para a desfaçatez daquele velhote, lá à frente, no canto da primeira fila, a masturbar-se, indiferente à nossa presença. Pouco falaste para mim, mão direita crispada no meu pulso. Senti um frémito percorrer-te, quase um arrepio, fazendo-te enclavinhar ainda mais os dedos no meu braço, quando os actores se colocaram na posição do missionário. Não precisei dos teus olhos para rever a imagem que te revelara o fenómeno do sexo. Recordo quase ter gargalhado, a certa altura. Pois tu julgavas que apenas as mulheres são capazes de simular o orgasmo? Pobre criança! Pensavas já saber tudo neste domínio e afinal... Provavelmente, ele não ejaculou, embora tenha parecido. Mas mesmo que tenho ejaculado, consegue aguentar, erecto, todas as carícias das duas actrizes, de mãos, de seios, de bocas, de corpos e sexos, porque toma produtos para isso! Então não há! Olha, nesses sexy-shops porta sim, porta sim, que há aí na Pigalle, não faltam!

No palco, os três actores, tantos quantos os espectadores, continuavam o seu trabalho bizarro, fazendo desfilar todas as fantasias ancestrais, sem nada criarem de verdadeiramente novo. A diferença entre fazer amor ou praticar o sexo. Ali, tudo pode ser novidade. Aqui, a repetição, enfadonha ou não, é a constante. A certa altura, uma das mulheres deitou-se de costas, sexo voltado para a plateia; a outra mulher estendeu-se lentamente por cima dela, em sentido inverso. O homem ajoelhou-se por detrás das duas, também voltado para a assistência, acariciando o sexo erecto com a mão direita; e cravou um olhar irónico, duma fixidez cínica, nos olhos de Maria do Céu, que ficou hipnoticamente presa dele. Com alguma violência, peguei num braço de Maria do Céu e quase a arrastei para fora da sala de espectáculos. Durante algum tempo, caminhámos em silêncio, ao longo do Boulevard Clichy.

(continua)
Magalhães Pinto

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