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29.5.07

A DUVIDA - 81º, fascículo

(continuação)

Só tinha ido pela Ana quase cinco anos depois. Olhou-a com ternura e pegou-lhe na mão. Uma boa mulher esta minha Ana. Esperou por mim aquele tempo todo. Se calhar porque nem sonhara que aquela Solange, lá de Lille, lhe tinha posto a cabeça à roda. Mas, quando foi por ela, já estava em Paris, para onde saltara na esperança de encontrar trabalho no batiment, sabe como é, os franceses não gostam de alombar com celhas de cal à cabeça. Começara a trabalhar de trolha, mas rapidamente se apercebeu de que melhor governo teria com uns biscates por conta própria. Começara sózinho. A demanda era muita, porém. Por isso, fora buscar outros portugueses para o ajudarem. E resolvera regularizar a sua situação de empresário nascente, porque os clientes lhe pediam facturas e recibos e tudo isso. Assim começara a sua empresa. Fora à terra ao fim de cinco anos, nas vacanças, e fizera já um casamento de arromba. E trouxera a Ana com ele. Voltar, regressar de vez, era sempre uma possibilidade, iam lá sempre nas férias, mas era uma hipótese cada vez mais longínqua. Tá ver, com o Jacques e o François já adiantados na école française, era matar-lhes o futuro se eu e a minha Ana decidíssemos ir embora...

Eram quase duas horas da madrugada quando deixamos o Caveau des Oubliettes. Não sem antes uma das empregadas de mesa nos ter ido mostrar um pequeno museu contíguo, onde estavam expostos os instrumentos de tortura, usados pelos esbirros de Luís XIV no interrogatório dos infelizes caídos naquelas celas. Nas quais apodreciam, se não tinham a sorte de sucumbir ao suplício. Esquecidos. Insignificantes oubliettes das grandes questões de estado.

O ar fresco e seco da noite cortou-nos as faces. Apressamos as despedidas. Como o Miguel ia para os lados do hotel, foi ele que nos levou no seu Renault, duzentos mil quilómetros já rodados comprados nas occasion por dez reis de mel coado.

(continua)

Magalhães Pinto

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