Uma vez, já há alguns anos, escrevi aqui, nestas colunas, que considerava trágico estarmos a ser governados por António Guterres. Não faltou quem nisso visse a manifestação de partidarismo. O tempo passou. Seis longos anos. De laxismo. De incompetência. De compadrio. De reformas urgentes não feitas. De esbanjamento dos nossos sempre parcos recursos. De cobardia governativa. De palermices umas atrás das outras. O resultado está aí, à vista. Não sou eu que o digo, agora. São os Portugueses que o sentem na pele. São vozes autorizadas, de gente séria. É a Bolsa que o reflecte. São os impostos não pagos. É a ruptura do Estado. É uma frágil segurança social. É o desemprego. São as contestações da via pública.
E, o que é mais grave, é que a procissão ainda vai no adro. Sacrifícios maiores nos esperam. Na sua edição de 21 de Outubro último, o prestigiado jornal Financial Times traçou um negro retrato da situação do país, sob o título genérico de "RISCO CRESCENTE POR NÃO AGIR – Os trabalhadores mais mal pagos da Europa não aceitam as reformas há muito necessárias". Uma negritude a roçar a ironia. Traduzida nesta legenda da foto de uma romaria: "A austeridade começa a afectar o país, mas os Portugueses têm muito que celebrar nas inúmeras festas ao longo do território". E o jornal sumariza as questões essenciais do modo como, com a devida vénia, reproduzo a seguir:
ECONOMIA – Défice orçamental significa que podem ser introduzidas sanções da Comunidade, a não ser que a despesa pública seja drasticamente reduzida.
REFORMAS – O Governo não pode dar-se ao luxo de adiar os seus duros planos de mudanças estruturais.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – O serviço público é numeroso (em recursos humanos), burocrático e resistente à mudança.
FUTEBOL – Em 2004 terá lugar o Campeonato da Europa, mas poderá o país recuperar o dinheiro gasto?
Habituados a uma vida fácil, nós não quisemos saber de um aviso que, repetidamente, nos foi feito. Dizia-se, nos anos de ouro, que ou aproveitamos a oportunidade que a adesão à Comunidade e à Moeda Única nos oferecia ou iríamos pagar bem caro. De 1985 a 1995, isso aconteceu.
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O efeito mais imediato deste fenómeno é o desequilíbrio das contas do Estado. Um défice monumental. Ainda por cima, proibido pela mesma Europa que se farta de mandar para cá dinheiro. É verdade que outros países, bem mais fortes do que nós, padecem do mesmo mal. Só que lá, o desequilíbrio é conjuntural. Uma pequena melhoria da situação económica e o défice desaparece. Enquanto, entre nós, o défice é estrutural. . Não há melhoria económica que nos salve. 15% do Produto Nacional Bruto é absorvido pelo pagamento de salários a cerca de 700.000 servidores públicos. E não há forma de reduzir isto a não ser através da redução de salários – o que é impossível – ou do despedimento dos funcionários públicos – o que estes não aceitam. Pobre ilusão! Não há modo de enganar a realidade. Não aceitando as reformas necessárias, agora, os Portugueses estão a cavar o buraco onde vão cair, inexoravelmente.
Cairam em saco roto todas as vozes – muito poucas, aliás, sobretudo de quem interessava – que se ergueram contra a realização do Euro/2004. Não me pesa a consciência. Desde o primeiro momento, gritei que não podia ser. Há luxos que não se podem ter enquanto não há pão. O actual Ministro da Tutela do Desporto – José Luís Arnaut – disse ao Financial Times: "não teríamos agido deste modo". Caso para perguntar onde estava ele e os seus confrades quando o Euro/2004 foi aprovado no meio do maior regosijo. É fácil, hoje, tentar sacudir a água do capote. Mas ele – e grande parte dos Portugueses – fizeram orelhas moucas às vozes que anteviam o pior. O pior está aí. Paguemos a factura. Gilberto Madaíl disse ao Financial Times que o Euro 2004 vai custar cerca de cinco biliões de Euros (aproximadamente, mil milhões de contos). Deste montante, algo será gasto em estradas, extensões de aeroportos e hospitais, diz ele. Estruturas que, naturalmente, ficarão. Mas, daquele montante, apenas cerca de 20% serão custeado por capitais privados. O resto virá do dinheiro dos Contribuintes e, numa pequena parte, dos fundos comunitários. Como sempre acontece, as pessoas "esquecem-se" de dizer o mais importante. É que é muito diferente construir essas infraestruturas que ficam em função das necessidades futebolísticas do que fazê-lo em função das reais necessidades económicas e sociais do país. Os homens de futebol arriscam-se a ser os coveiros, ou pelo menos cúmplices na tarefa, do país. Para vermos até que ponto o Euro/2004 é absurdo e apenas mais um pretexto para financiar os clubes de futebol à custa dos Contribuintes, basta verificar que Portugal se dá ao luxo de estar a construir DEZ estádios de futebol para o evento, quando NUNCA qualquer campeonato europeu de futebol passado se realizou em mais de OITO estádios. Pobretanas cheios de fome em casa, a vestir fraque quando vamos ao futebol. Com amigos como temos nos principais lugares de responsabilidade pública, para que é que precisamos de inimigos?
Gostaria de terminar estas minhas notas de hoje com palavras de esperança. Claro que há sempre lugar para ela. Mesmo como cadáver, Portugal voltará à superfície. Esperemos que não seja como cadáver. Mas de algo já ninguém nos livra. Da sede e da fome a que os náufragos estão sujeitos. E é de naufrágio que poderemos estar a falar bem em breve. Por nossa culpa. Por nossa exclusiva culpa. Uma culpa que ainda nos custa reconhecer. Como bem o dizem os esforços dos diferentes grupos de pressão para manterem os seus privilégios. Novamente, ilusão. Que acabará por nos atirar uns contra os outros, precisamente quando deveríamos estar mais unidos. A próxima adesão de mais dez países à Comunidade Europeia, o consequente desvio dos fundos desta para esses novos países - tal como já vieram para Portugal - e as condições mais favoráveis que esses países oferecem – tal como já aconteceu com Portugal – encarregar-se-ão de mostrar que, se o navio for ao fundo, ninguém escapará. Nem mesmo os ratos.
Excertos da crónica NEGRO - Magalhães Pinto - "Vida Económica" - 20/10/2002
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