(continuação)
A ida a Rala parece ter marcado o descarrilar do meu juízo, Maria do Céu. Ao anunciar-te a nossa ida a Paris, nem sonhava estar a gravar, com o estilete dos acontecimentos inevitáveis, a trajectória que nos conduziria ao fim. E, no entanto, peguei alegremente no convite do chefe da redacção e fui, a correr levar-to, como quem quer entregar rapidamente uma flor acabada de colher. Nem podias imaginar a minha excitação por ter a oportunidade de te levar à minha cidade mais amada. Dois amores, ao mesmo tempo! Tu e Paris! Iria levar-te a Montmartre, para vermos, do Sacré Coeur, nascer o sol sobre os telhados de Paris, cinzentos, com aquelas chaminés todas, que pareciam cogumelos de forma esquisita num bosque xistoso. Comigo, levar-te-ia a pé da Étoile às Tulherias, como se fosses uma imperatriz. Os sinaleiros fariam de guardas imperiais, mandando parar o trânsito para te deixar passar. Levar-te-ia também, nos bateaux-mouche, a conhecer as trinta e três pontes de Paris, especialmente a de Alexandre III, com os seus candeeiros a lembrarem o tridente de Neptuno. Faríamos um piquenique no Bosque, com carnes frias compradas na charcutaria moderna da Rua Rivoli. À noite... não, à noite não irìamos à Pigalle. Por qualquer prurido subconsciente, tendo ainda frescas as consequências da nossa ida a Rala, temia levar-te a um sítio onde não faltariam reminiscências da tua vida passada. Levar-te-ia também a visitar o apartamento onde Chopin e George Sand tinham vivido horas de amor aparentadas com as nossas! Ou á Torre, para almoçar. Oh!... a Torre! Nem imaginas como é belo aquele conjunto arquitectónico! Quer seja visto da Escola Militar, quer do Palácio de Chaillot! O palácio, os jardins, a ponte de Iena, a Torre, os Campos de Marte e a Escola Militar! Cada coisa no lugar exacto, em rigorosas proporções, como se tivessem sido meticulosamente medidos cada ângulo, cada aresta, cada volume!...
Os dias seguintes foram de azáfama. Maria do Céu andava visivelmente excitada. Para quem tinha nascido em Rala, uma visita à estranja tinha o sabor de fruto exótico, a sumo apimentado. Não que ela não tivesse ouvido já falar bastante de França. Nas férias grandes, ali por alturas das festas da Senhora do Monte, os serões eram um rodopio de casa para casa, para ver e ouvir os aventureiros que a guerra colonial tinha levado a salto, até para lá dos Pirinéus. Regressados por breves instantes aos horizontes da infância, numas férias merecidas. Também ela quase via já aquelas maravilhas todas, contadas no testemunho dos regressados. Sempre a tinha impressionado sobremaneira aquela história dos combóios, uns atrás dos outros, a viajar por debaixo dos pés das pessoas. Nunca conseguira entender - mas também nunca perguntara - para onde ia o fumo, se os combóios andavam debaixo da terra. Mas isso só contribuira para adensar a aura de mistério que embrulhava a sua noção dessas terras maravilhosas de lá longe, onde se ganhava mais num mês de trabalho na fábrica, do que durante um ano inteiro a cultivar as couves e as alfaces da cortinha do Ti´Joaquim ou a espalhar estrume no regadio da quinta do morgado.
(continua)
Magalhães Pinto
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