(continuação)
Procurei escapar á tensão, concentrando-me na revista. Em vão. As páginas eram uma amálgama de cores indecifrável. Subitamente, a minha atenção ancorou naquela fotografia. A cores, não obstante a tragédia que descrevia. Incomodativa. Inquietante. Maria do Céu atenuou-se por largos minutos, ideias em sobressalto. Aquela fotografia, ao contrário das fotografias da minha profissão, era muito mais o futuro do que o passado. Era uma janela aberta e não uma porta fechada. Talvez uma janela aberta por terem fechado uma porta.
Um miúdo, pele da cor de África, com evidentes sinais de mal-nutrição, dois rios de lágrimas a jorrarem com o vigor do Revué, das nascentes marejadas e a rasgarem sulcos dolorosos, sentia-se, cara abaixo, até se perderem nas margens do queixo. Do narizito brilhante, dois pingos de muco límpido tinham escorrido, até se perderem no soluço que escapava, ouvia-se, dos lábios entreabertos. Mas foram sobretudo os olhos - sempre os olhos, Maria do Céu... porque não vens?... onde estás?... - foram sobretudo os olhos que me impressionaram. Cravados na lonjura, negros como a pele, brilhantes do choro que os lavava, eram o desenho, a forma, o corpo material duma interrogativa angústia. Densa. Tão sensível como indizível. Dolorosa e acerada, como uma faca de mato, acabada de afiar.
É assim, sempre, Maria do Céu. Uma razão para sofrer e nada nos ocorre que não sejam interrogações. No meio da angústia da tua ausência, ali estava eu, mergulhado em pensamentos enraizados numa fotografia de revista desactualizada, páginas quebradas já, de tão desfolhada, mas sentindo, lá bem atrás desses pensamentos, um pilão a martelar continuamente, onde estâs?... porque não vens?... Era como se todo o meu mundo, podendo viajar pelo espaço exterior livremente, não fosse constituído senão por ti, imenso buraco negro que me absorvia. E, no entanto, a fotografia da tragédia duma criança conseguiu fazer-me repartir entre ti e ela.
Que fazeis do meu mundo?... Os olhos daquela criança exprimiam, audivelmente, com a raiva impotente do espectador-vítima, uma interrogação violenta, importante, crucial, uma interrogação dirigida aos homens-grandes, perdidos na teia dos seus problemas menores. Uma interrogação incrédula e temerosa. Que fazeis do meu mundo?...
(continua)
Magalhães Pinto
Sem comentários:
Enviar um comentário