(continuação)
Que fazemos do seu mundo... Não encontrei resposta de imediato. O mundo daquela criança não devia ser muito diferente do de Maria do Céu. Ou seria? O mundo de cada um é construído pelos outros todos. Não é? O meu espírito era uma imensa interrogação. Um mar de dúvidas nascidas dos olhos daquela criança. A resposta surgiu vestida duma outra interrogação, não menos complexa. Afinal, que natureza é a nossa, nesta trajectória a conduzir-nos do nada ao desconhecido? Deuses ou demónios? Não é evidente que caminhemos rumo à perfeição, pensei eu.
Hoje, creio que perfeição era o que eu te exigia, Maria do Céu. Um perfeição que se encontra em nenhures, se calhar. Não se consegue perceber se vamos do nadir ao zénite ou se, pelo contrário, nos vamos afundando no abismo da desumanização. Isto é, a nossa trajectória é do nada para o desconhecido ou do desconhecido para o nada? Insensívelmente, enquanto esperava por ti, reduzia a humanidade a ti e a mim.
Cerrei as pálpebras. Vi desfilar uma legião de cientistas sem rosto pesquisando, denodada e afincadamente, um antídoto universal contra todas as ameaças à vida física dos homens. Em seu redor, uma multidão imensa destruía, sistematicamente, os elementos naturais tão necessários a essa vida. Como se fossem slides projectados numa tela de cor imprecisa, as imagens sucediam-se no meu espírito. Vi homens e mulheres atarefados a produzirem automóveis, frigoríficos, televisões, videos, telefones sem fios, numa fábrica com janelas feitas de ecrans de computadores. Numa lixeira enorme, nas traseiras, amontoavam-se, juntamente com circuitos integrados meio desfeitos, montanhas de drogados, por entre os quais um velho, meio roto e sujo, vasculhava, à procura da família. Vi-me no meio dum bando de obuses, a voarem em todas as direcções, asas feitas duma cartolina cinzenta onde, estampada na cor do sangue, estava uma cruz simples.
(continua)
Magalhães Pinto
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