(continuação)
Por mais duma vez, durante aqueles dias passados em casa, procurei fazer reviver o passado. Sentia, da parte de Maria do Céu, um esforço de criação duma atmosfera cordata entre nós dois. O episódio de Paris não era nunca abordado; mas sentiamo-lo presente, quase material, nos nossos olhares fugidios, nas nossas frases sincopadas, guilhotinadas pela lâmina invisível das más recordações. Quando as nossas mãos se tocavam, não sei se por acaso se por um desejo inconsciente, repeliam-se, como polos sinónimos duma corrente elécrica estranha. Os nossos actos de amor, nos quais eu insistia, deixavam, no final, um amargo sabor a sexo puro, despidos da emoção que vestira o nosso relacionamento anterior. Eu bem tentava transmitir a cada gesto o calor antigo, mas parecia uma criança a andar, desajeitadamente, dentro das chinelas da mãe. Sentia-me desiquilibrado a cada passo. Maria do Céu parecia esforçar-se também, com igual sem jeito. Ainda bem que não saía de casa. Encontrava-a, quando regressava, como se o tempo não tivesse passado na minha ausência. Notava-lhe mesmo um certo desmazelo na apresentação. Já não se penteava como antigamente. Parecia atormentada pelos acontecimentos de Paris. Não raramente, pensei a estar a assistir à derrocada dum edifício laboriosamente erguido. Lentamente, como acontece nos sonhos.
Foram dias amargos para mim, aqueles, Maria do Céu. À perda da emoção anterior, eu juntava sentir-me responsável por isso. Muitas vezes, Maria do Céu, senti um desejo enorme de gritar-te pronto, acabou, a culpa é minha, esquece isso, foi uma loucura motivada pelo muito que te amo, Maria do Céu! Será que tudo quanto fiz até agora não vale o perdão dum acto imponderado? Sabes uma coisa, Maria do Céu?... Hoje não guardo rancor nenhum por tudo quanto se passou; mas, se tivesse guardado, se abrigasse ainda, na alma, alguma coisa para arremessar à cara da tua consciência, seria certamente pelos dias seguintes à viagem a Paris e pelos momentos de auto-censura que, nesse período, quase iam destruindo o meu amor próprio.
(continua)
Magalhães Pinto
Sem comentários:
Enviar um comentário