(continuação)
Ao sair do consultório médico, Maria do Céu, sabendo da tua visita, a confusão era, em mim, completa. Eras, decididamente, uma surpresa contínua. Desde o Borboleta Negra. Indagar fosse o que fosse sobre ti, observar e tentar compreender cada um dos teus actos, dos teus ditos, dos teus comportamentos, começava a ser um fascínio obcecante. Partida de xadrez onde era possível despromover um rei a peão e fazer uma torre inexpugnável duma raínha. A tristeza que sinto, na espessura da sombra onde a minha alma se abrigou, não impede a imitação dum sorriso, ao imaginar o pensamento das pessoas que assistiram à minha saída daquele prédio e me viram atravessar a rua como um autómato. Sem me lembrar do trânsito. Provocando uma chiadeira enorme de pneus em travagens bruscas, como sirenes de angústia a despertarem o meu alheamento. Ginecologista? Porquê, pensei eu então. A meu ver, não havia nenhum motivo, absolutamente nenhum, a obrigar-te a ir ali. Não estavas doente, tanto quanto eu me podia aperceber, nem te ouvira queixas. Nunca tínhamos falado em nada relacionado com filhos. Devias saber tudo quanto era preciso saber sobre a vida sexual duma mulher. Ginecologista, porquê? É importante entenderes-me bem nesta altura, Maria do Céu. Porque foi isso, foi o facto do médico ser ginecologista, a precipitar os acontecimentos, a servir de catalizador da transformação da escorrência algo pastosa da minha dúvida na solidez da explicação exigida. Fosse ele um outro médico, cardiologista ou oftalmologista, por exemplo. Em qualquer outra especialidade teria encontrado uma explicação satisfatória para a tua visita. E os momentos terríveis pelos quais passámos a seguir não teriam acontecido. Ter-me-ia provavelmente calado. Talvez mais, indagaria, preocupado, dos teus males. Mas um médico ginecologista obrigava-me a abrir o jogo todo. Era imperativo falar-te. Eles não me diriam, no consultório, o argumento da tua visita. Mais ninguém assistira. Ninguém, senão tu, poderia secar a inundação da minha alma por interrogações sem resposta. Em lugar do esclarecimento, tão desejado, da minha dúvida, via-a agigantar-se, sair da razão e sorver todo o meu ser. Sentia as vísceras contorcerem-se, numa ânsia de libertação mal sucedida. Era como se a dúvida cravasse as suas garras em cada célula do meu ser. Entende-me bem, por favor, Maria do Céu! Não podia fazer outra coisa senão falar-te dela!
(continua)
Magalhaes Pinto
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