(continuação)
Em toda a minha relação contigo, Maria do Céu, eu não me detive, um só momento, a olhar para dentro de mim, friamente, racionalmente. Não percebera senão os meus sentimentos. E, mesmo esses, dum modo superficial, errado, disforme, como se apenas os pudesse ver através da vidraça fosca, granitada, de estar ao teu lado, em lugar de estar contigo. Sabes, minha querida... como dizer... amiga, só comecei a definir bem os contornos do meu amor por ti quando, depois de saber da tua visita ao ginecologista, cheguei à conclusão de me ser impossível saber realmente tudo, a não ser falando contigo. O que eu deveria ter feito logo de início. O amor entre um homem e uma mulher exige, mesmo antes da fidelidade física, a lealdade espiritual. E, ao prometer-te, lá no Mindelo, o silêncio sobre as minhas dúvidas, eu já não estava sequer a ser leal comigo, quanto mais contigo! Perdoa-me por isso... Perdoa-me esse comportamento, o qual só não foi tão grave porque, nessa altura, já os dados do nosso destino próximo estavam jogados, sem possibilidade de recolher a mão ainda cheia. Mesmo assim, sinto a minha culpa.
Preparei cuidadosamente a minha conversa com Maria do Céu. Sentia a dificuldade de manter a nossa relação para além dela, não obstante ainda nem suspeitasse a lonjura aonde ela nos ia levar. Telefonei ao Marques, para confirmar a data exacta em que Maria de Lurdes tinha ido ao ginecologista. Encontrei-o. Maria do Céu já tinha recolhido a casa. E ele também. Anotei o nome, o endereço e, até, o número de telefone do médico. Arrumei a montanha de papéis espalhados pelos quatro cantos da secretária. Invoquei um deus qualquer, inexistente em alguma parte, numa interjeição de desagrado pelo trabalho acumulado nestes últimos dias. Arrumei, maquinalmente, alguns lápis a monte, alinhando-os como soldados em dia de parada, numa necessidade de ordem indisfarçável. Apaguei o candeeiro, já meio ferrugento no pé. E fui para casa.
(continua)
Magalhaes Pinto
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