(continuação)
XXI
Comecei a abordagem do assunto num tom tenso, a desmentir a trivialidade das perguntas iniciais. Tens passeado muito, algumas compras, não tens encontrado nenhuma amiga do antigamente, já deves conhecer bem o Porto... Não há como ter boa saúde para gozar bem a vida! Não me digas que andas por aí, pela cidade, e não sabes sequer onde fica a Cordoaria... Maria da Céu ia respondendo sem grande entusiasmo de pormenores. Desde a ida a Paris, nunca mais fora a mesma. Era como se estivesse a percorrer a viagem de regresso dum destino desejado. Deixei cair, como o ar mais casual possível, a afirmação de que, pelo menos, conhecia bem a Rua Gonçalo Cristóvão. É, é a do jornal. Mas não é tua conhecida por isso, pois não?
A princípio, quando te comecei a falar na Gonçalo Cristóvão, não entendi, Maria do Céu. Estava à espera de algo mais uma vez surpreendente, sob a forma duma explicação ligeira. Mas foi como se uma labareda de pânico, irreprimível, ateada no canto mais recôndito da tua alma, não encontrasse outra saída para se expandir, que não fossem os dois minúsculos abismos das tuas pupilas. Só aos poucos me apercebi da verdadeira natureza do teu estado de espírito. Certamente devido ao meu complexo de culpa, não identifiquei logo aquele brilho dos teus olhos como sendo de pânico, antes como a censura, já, dos meus actos clandestinos. Pouco a pouco, porém, li nas entrelinhas da tua expressão um grito de medo. Um medo inexplicável, pensava eu. Mas, nem por isso, menos palpável, menos sensível.
(continua)
Magalhães Pinto
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