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24.9.07

CRÓNICA DA SEMANA - (II)

Há dias, num jantar, o Senhor Ministro das Finanças anunciava, com alguma convicção, que o défice orçamental português, no ano de 2008, será da ordem dos 2,4%, valor mais baixo desde 1974. No mesmo dia, partia para Cuba mais de uma dúzia de portugueses para serem operados aos olhos, dado o longo tempo de espera que já levavam em, Portugal, pela cirurgia necessária. Não pude deixar de meditar nos bizarros caminhos que a governação do meu país leva. Uma parecia agradável, na medida em que fazia presumir que um dos grandes males do país – o défice – está em vias de ser debelado. A outra era bastante desagradável, porque fazia presumir que um mal endémico do país – os cuidados de saúde prestados pelo Estado – estão em vias de agravamento. As notícias estavam, obviamente, relacionadas uma com a outra. Não de modo directo, imediatamente evidente, mas de maneira indirecta, porventura não imediatamente visível. Uma dependia da outra. Eram ambas causa e efeito recíprocos. E, se atentarmos ao país a que aquela mais de uma dúzia de portugueses recorria – Cuba – tida por um os mais pobres e menos desenvolvidos da actualidade (com excepção de medicina, reconheça-se – havemos de chegar à triste conclusão de que Portugal se arrisca a ser o campeão do menor défice público entre os países subdesenvolvidos. Uma triste liderança. Uma razão para dizer “ao que nós chegámos!”.
Vamos por partes. Os desmandos financeiros sem conta, praticados por sucessivas administrações públicas, centrais e locais, conduziram Portugal à necessidade de reconduzir o seu défice orçamental anual para níveis exigidos pela Europa a que julgámos um dia poder pertencer. E, chegada a hora – diga-se claramente, com José Sócrates no Governo e Cavaco Silva na Presidência da República – o esforço foi iniciado. Ao dispor dos governantes não havia muitas alternativas. Um Orçamento do Estado divide-se, de um modo geral e simplificado para bom entendimento, em receitas correntes e receitas extraordinárias de um lado, e despesas correntes e despesas de investimento do outro. Se o primeiro lado é pronunciadamente menor do que o segundo lado, isto é, se as receitas do Estado são menores do que a sua despesa, há um défice orçamental insuportável. Era essa a situação, Para corrigir o défice, o governante está colocado numa situação em que ou aumenta as receitas ou diminui as despesas ou, o que geralmente faz, aumenta as receitas e diminui as despesas simultaneamente.
Até aqui tudo é simples. Começa a não ser quando pensamos que as receitas podem ser aumentadas na sua parte corrente, isto é, aumentando os impostos, ou na sua parte extraordinária, isto é, desfazendo-se de património. E quando pensamos que as despesas podem ser reduzidas na sua parte corrente – isto é, nas despesas com o funcionamento gigantesco do Estado – ou na sua parte de investimento – isto é, das obras (sentido lato) que o Estado manda fazer. E complica-se quando, baixando às despesas correntes, vemos que o Estado pode reduzir a despesa com o pessoal, com as compras que faz por se crerem necessárias ao funcionamento da máquina pública ou com as prestações sociais que presta aos cidadãos em contrapartida dos impostos e contribuições que este paga. E, neste último domínio, ainda podemos distinguir entre as pensões e subsídios e os cuidados com a saúde. Tudo a deixar milhentas de combinações possíveis para conseguir o mesmo objectivo: reduzir o défice público.
Obviamente, é no volume dos impostos que pagam, por um lado, e na eficácia do funcionamento da máquina pública – tribunais, segurança, administrativa – e nas prestações sociais que os cidadãos sentem o esforço feito pelo governante. E apenas podemos dizer que estamos a sentir esse esforço há demasiado tempo, para ser concreto desde que um Primeiro-Ministro chamado Durão Barroso, numa frase que escandalizou meio mundo talvez por ser inteiramente verdadeira, disse que “o país está de tanga”. Esse sentimento dos cidadãos é que verdadeiramente mede o sacrifício imposto pelo controlo do défice. E é na análise do problema de saber se não haveria outro modo menos sacrificador de conseguir o mesmo objectivo que pudesse ser seguido pelo governante.
Aqui chegados, uma aproximação para responder ao problema pode ser encontrada por uma comparação simples. Procurando hierarquizar as necessidades dos cidadãos, de modo a poder medir as restrições colocadas à satisfação dessas necessidades. Procurando avaliar onde é que o governante, para atingir o objectivo da redução do défice, corta ou aumenta. E da comparação das duas escalas, medir o sacrifício do cidadão. Entendendo, face a alternativas disponíveis, se esse sacrifício podia ou não ser menor. Porque qualquer governante tem que ter sempre presente, face aos objectivos que persegue, que só é bom governante se minimizar os sacrifícios do cidadão para as atingir. É isso a economia do bem-estar que todos os governos civilizados do Mundo hoje tentam atingir.
Estou mesmo a ver o meu Leitor a pensar: é fácil, corta-se ao investimento público e deixa-se tudo o resto como está. Diga-se de passagem que tal chegaria para atingir o objectivo que queremos para o défice. Mas não pode ser. Não só porque um futuro melhor carece do investimento público, mas também porque a falta de investimento público numa economia a ele habituada conduz à recessão económica, ao fecho de empresa, ao desemprego. Portanto, isso tem que ser feito com muito cuidado. Claro que esse cuidado não deve ser tão, diga-se, “cuidadoso” que o governante entenda dever enveredar por investimentos faraónicos, como são o novo aeroporto da OTA ou o TGV.
Admitindo uma criteriosa selecção dos investimentos públicos e mostrando-se impossível reduzir suficientemente o défice apenas pela via do corte nos investimentos, fica o aumento de impostos e a despesa corrente. E aqui, sim, provocando já sacrifícios de monta e imediatos nos cidadãos.
Julgo não ser disparatado que as necessidades dos cidadãos se hierarquizam, da maior para a menor, do seguinte modo:
- Alimentação
- Saúde
- Habitação
- Segurança
- Protecção na velhice
- Educação dos filhos
seguindo-se uma longa lista de necessidades menos prementes.
Para assegurar por si mesmo a satisfação das suas necessidades, o cidadão precisa de trabalho, isto é de um rendimento disponível, regular e recorrente. Algumas das suas necessidades não podem ser auto-satisfeitas. A satisfação individual delas seria insuportável. Entre elas, a Saúde ocupa um dos lugares cimeiros. Isto é, os cortes na Saúde, efectuados por um governante à procura de reduzir o défice público é sempre muito sensível pelos cidadãos. Impõe-lhes sacrifícios que doem – e não apenas em sentido figurado.
Creio que não preciso de acrescentar mais nada. A tal segunda notícia com que iniciei esta crónica mostra de que modo está a ser primordialmente, ou pelo menos acentuadamente, através dos cortes na Saúde que o governante está a conseguir ser recordista do défice, desde logo entre nós desde 1975, e depois entre os países subdesenvolvidos, como Cuba. E foi esta verificação que me deixou triste. Muito triste. Há glórias que não valem o suor gasto para as conseguir.

Crónica TRISTE LIDERANÇA - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 26/9/2007

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