Imaginem o meu contentamento. Leva uma pessoa anos a pensar que quem de direito é surdo e, de repente, chega à conclusão que não é. Foi aquilo a que se chama uma semana em grande. A Reforma, a suprema, aquela sem a qual todas as outras reformas não o chegam a ser, foi anunciada. Claro que há uma distância maior do que a légua da Póvoa entre o ser anunciada e o ser implantada. As resistências vãos ser muitas. Porque as reformas esbarram, quase sempre em mentalidades não reformadas. Vai haver manifestações contra. Vai haver paralizações. O Dr. Carvalho da Silva, o da Inter, vai desdobrar-se em intervenções televisivas. Vai ser um São Miguel para as empresas de camionagem, a transportar descontentes, dos quatro cantos do país para o quadrilátero do Paço. O inefando Dr. Prado Coelho vai deliciar-nos com duas mil setecentas e vinte e quatro citações dos filósofos que, alguma vez, se debruçaram sobre a Administração Pública. Os funcionários públicos vão gastar os poucos minutos que ainda sobravam para resolver os nossos problemas a discutir os malefícios da Reforma. Tudo a tornar a implementação da dita um bico de obra. Mas, caramba! Só o facto de ter sido anunciada com esta pompa e com este pormenor já vale alguma coisa.
Com efeito, esta não é a primeira vez que a dita Reforma é anunciada. Se bem me lembro - que me perdoe o saudoso Vitorino esta usurpação canhestra - a primeira vez que ouvi falar dela, da Reforma, a implementação saldou-se pelo fim do papel selado. Muito pouco para tão grandes trombetas. Muito pouco para tão grande necessidade. Mas nunca, que me recorde, a Reforma da Administração Pública foi, passe o pleonasmo sónico, publicitada com tanto pormenor. E só isso já vale o aplauso. Aí está a discussão pública instalada. Bem haja o Governo. Bem haja o Senhor Primeiro Ministro. Como cidadão, só me cumpre agradecer. Começo a pagar os meus impostos com muito maior boa vontade. Desde que…
Exacto. Desde que. Desde que lhe não feneça a vontade para levar o empreendimento até ao fim. Devo dizer que os termos da Reforma contemplam, antes de mais, uma grande virtude e um grande defeito. Ambos, virtude e defeito, em situações que estão na raiz dos males da Administração Pública que temos. A grande virtude é que, se implementada, a Reforma acabará com a promoção por antiguidade. Uma ideia vinda dos "velhos tempos" que, apesar de tremendamente indigna, sempre foi acarinhada por uma grande parte do funcionalismo público. Nunca cheguei a entender esse gosto, esse carinho. Eu, que fiz tropa, nunca consegui separar os funcionários públicos da imagem típica dos cabos lateiros, a trabalhar uma vida para, pelo tempo, chegarem a sargentos. Mas a verdade é que muita gente, dentro da Administração Pública, gostava (e gosta) disso. A "carreira", por alguns pronunciada com algum orgulho, não passa de "carreiro". Medido em quilómetros de calendário. Muito raramente se encontra gente que olhe a carreira como um objectivo de valorização profissional e humana. Ao terminar com as promoções por antiguidade, a Reforma toca num dos pontos responsáveis pelo mau desempenho profissional do funcionalismo público. Ainda bem.
Mas é também por aqui que se vai encontrar o maior defeito. É que a Reforma deixa intocável um outro princípio. O do emprego para toda a vida. O carácter vitalício do emprego público é profundamente desmotivante. Não somos, infelizmente, perfeitos. E, por sermos imperfeitos, precisamos de incentivos para bem cumprir uma missão. Sejam eles materiais ou morais. Com a agravante de que aqueles que cumprem a sua missão guiados por incentivos morais estão em minoria. Com a agravante de cada qual pensar que ser bom ou mau, na Administração Pública, conduz ao mesmo. A Reforma deveria acabar com o emprego vitalício. Não o faz. Porventura porque é do entendimento político que não se pode fazer a caminhada toda de uma vez. Seja. Mas o defeito permanece lá. Ainda que o contrato individual de trabalho seja um pequeno indício de que as coisas podem mudar. Não será por isto, porém, que o Governo, que o Primeiro Ministro, merecem menos consideração.
A Reforma anunciada estabelece grandes princípios consignados à formação dos quadros públicos. É uma boa medida. É, porventura, uma compensação para os sacrifícios que, seguramente, também hão-de ser pedidos aos trabalhadores da função pública. Mas o Governo, o Primeiro Ministro, não podem esquecer-se de duas outras áreas por igual importantes: a dos equipamentos e a das remunerações. Uma Administração Pública eficiente exige, nos tempos que correm, equipamento tecnologicamente sofisticado. Não podemos estar a incentivar os funcionários públicos a progredirem, por mérito, na carreira e colocá-los, depois, a escrever de lápis e borracha na mão ou a carimbar, catrapuz, catrapuz, documentos sem conta nem medida. O combate à burocracia tem que andar de braço dado com este incentivo ao mérito. Por outro lado, o Governo, o Primeiro Ministro, não podem esquecer-se, também, do sistema remuneratório dos recursos humanos. Tem que valer a pena ter mérito. Ou manda-se o mérito às malvas. Estes, dois aspectos - ou três, se incluirmos a burocracia - que parecem menos cuidados na Reforma e sem tratamento dos quais esta será um nado-morto.
Um outro aspecto não neglicenciável, de algum modo relacionado com os anteriores que referimos, é o de que o Governo tem que saber conquistar os trabalhadores da função pública para a Reforma. Esta não é, não poderá nunca ser, obra de um Governo ou de um homem. Para que resulte, tem que ser uma vaga enorme feita da vontade das centenas de milhar de Portugueses que têm o seu emprego no serviço público. E de todos nós. Entendido que a Reforma da Administração Pública é tão essencial ao nosso futuro como, por exemplo, uma boa educação, todos temos que dar, com alegria, os passos destinados a transformarem-nos num país moderno. E este - o de nos transformarmos num país moderno, não necessariamente atado ao reumatismo do passado - um grande, porventura o primeiro depois de muitos anos, objectivo nacional. Que não poderá ser conseguido sem a implementação da Reforma da Administração Pública. Oxalá todos e, muito particularmente, os servidores públicos, o saibam entender.
O anúncio da Reforma trouxe-me, consigo, um benefício subjectivo inestimável. É que, subitamente, vi uma luzinha lá muito ao longe, ao fundo do túnel. Talvez isto seja, em grande parte, devido à minha longínqua obsessão pela existência desta Reforma. Mas, nesta coisa de luzes ao fundo do túnel, não importa tanto se elas estão lá quanto a gente pensar que as está a ver. E a verdade é que eu estou a ver essa luzinha. Na coragem do Governo em conduzir a Reforma até à sua implantação reside muito do engrandecimento da luzinha ou do seu apagamento. Não deixarei de proteger a luzinha com as minhas parcas capacidades. O Governo e o Primeiro Ministro merecem-nos, pelo menos, isso.
Crónica ATÉ QUE ENFIM! - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 27/6/2003
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