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3.5.07

A DUVIDA - 55º. Fascículo

(continuação)

Acredita, Maria do Céu. Quando partimos para o Mindelo, naquela primeira vez juntos, a minha intenção era viver contigo, sem hiatos, um fim de semana, inteirinho, de ventura. Falar-te da ida ao cinema, apenas se a oportunidade se deparasse. Foi já a meio de domingo, que ela surgiu, quando, recostada em mim, naquele recanto da duna protegido do vento, senti no teu sossego a paz necessária para te confrontar, sem riscos, com a verdade. Ainda hesitei durante um pedaço. Que iria eu lucrar com a verdade e com a tua aceitação da mentira própria, se é que a ias aceitar?... O medo de perturbar o fim de semana maravilhoso que estávamos a disfrutar... o temor dum choque fragoroso entre a comunhão espiritual e física dos nossos corpos enovelados e a oposição do tu e do eu, num confronto de testemunhos e argumentos improváveis... Hesitei, olhar torturado fixo nos teus cabelos, enquanto o teu se perdia, imóvel, no horizonte, semicerrado, na mira duma vaga protecção dos reflexos que o sol do entardecer ia pondo nas águas calmas da baixa-mar. Cheguei a decidir calar-me, Maria do Céu. Mas, sabes, a dúvida é uma ténia maldita, esfomeada de entranhas, milhões de anéis, insidiosamente recurvos, em cornucópia sem fim. Quanto mais os arrancas, mais se reproduzem. Apertam-te, apertam-te, cada vez mais. Primeiro, indefinidamente, num mal estar contínuo que não consegues localizar; depois, crescendo, crescendo, enroscando-se no teu peito, afogando-te os pulmões até arfares, amarfanhando-te um coração que anseia, desalmadamente, libertar-se da brida em que é posto. Cada certeza aparentemente atingida não é, senão, a ponta duma nova ténia de dúvidas. Certezas... dúvidas... Até que já não consegues distinguir entre elas. A dúvida atinge mesmo a certeza que dela tens, numa confusão pastosa na qual te sentes soçobrar. Cada esforço de racionalização, de método de análise, perde-se num labirinto fechado de ideias loucas a correrem à desfilada. Tudo definha, apenas ela, a dúvida, se agiganta. Já sem esperança de salvação, sente-la, enroscada no pescoço, estrangulando-te os pensamentos, sufocando-te o raciocínio, para ficarem só elas, as ténias, face ao esbracejar impotente e desorganizado da tua vontade e da tua razão. Foi isso que me decidiu. Atalhar, enquanto era tempo. Apetece-me pedir-te desculpa pelo susto causado e visível, quando, com vigor, te voltei para mim e, por uma eternidade, fiquei a prescrutar a fundura dos teus olhos, na vã esperança de neles encontrar as respostas para perguntas que, mesmo então, te não queria fazer.

(continua)

Magalhães Pinto

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