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4.5.07

A DUVIDA - 56º. fascículo

(continuação)

Maria do Céu fitou-me, interrogativamente, todo o tempo, com uma sombra de súbita incompreensão a unir-lhe as sobrancelhas. Que bicho me mordera, para provocar em mim tão súbita mudança? Só desviou o olhar, cravando-o num cacto qualquer a espreitar da areia por detrás de mim, quando, com a voz trémula de emoção disfarçada, lhe perguntei, como se fosse a primeira vez, aonde tinha ido na quarta-feira à noite. Senti um arrepio de pânico a transformar em espinhos a penugem dos seus braços, de toque aveludado e excitante. Mesmo assim, insistiu. Ao cinema, ao Rivoli. Até encontrara a Sueli e tinham as duas ido, depois do cinema, já mo tinha dito, à Regaleira, comer qualquer coisa. De que tinham falado? Já não se lembrava bem, não era seu hábito reter pormenores de conversas banais. Deviam ter falado do tempo antigo, eu sabia como era, tanto tempo sem se verem! Se, quando chegara, não tinha falado nisso, só por esquecimento. Evidentemente, o nosso relacionamento também tinha vindo à baila. Aliás, Sueli tinha-se mostrado extremamente curiosa a esse respeito, agora se lembrava! Mas que raio de insistência a tua! Se eu soubesse que ias ser tão curioso, tinha anotado tudo num papel. Além disso, é assim tão importante, para ti, o que eu faço quando não estás por perto?


Era, Maria do Céu, era! Em qualquer momento, perto ou longe de ti, por essa altura, era já importante saber dos teus passos na minha ausência! Mas muito mais importante, era não conhecer os teus passos, o que fazias. Talvez devido às particulares circunstâncias do nosso relacionamento, e uma vez apaixonado por ti, vivia entre o constante temor de te perder e o de te saber perdida! Por isso, a minha voracidade de conhecer a verdade de cada instante teu, como único modo de temperar, de dominar, aquele temor. E agora, quando a certeza duma mentira me triturava, moínho sem dó, de volta e revolta em espiral de vertigem, agora, quando essa certeza da mentira me levava a mergulhar nos teus olhos fugidios como enguias, na obsessão de encontrar a verdade, eu não era senão uma ideia fixa: onde estiveras na quarta-feira à noite. E insisti, insisti, desfiz-te com argumentos, desfazendo-me a mim próprio no ritmo dessa insistência. Simulei saber mais do que sabia, dobrei-te, massacrei-te, torturei-te, até as lágrimas te rebentarem, vencida finalmente a resistência duma defesa sem esperança.

(continua)
Magalhães Pinto

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