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6.5.07

A DUVIDA - 58º, fascículo

(continuação)

Quando a senti mais serena, peguei nela ao colo e transportei-a, enrodilhada no meu pescoço, para dentro de casa. Soluços a sublinharem cada passo esforçado. Agarrei ainda duas lágrimas suas, com os dedos duma ternura capaz de escorraçar os seus medos. Senti-as, bravias, a lutarem na minha mão, procurando escaparem-se. Tapei-lhes a fuga com uma teia de meiguice. Ouvi-as chorar, gemer, gritar pela liberdade. Agarrei-as firmemente. Até que as senti, paradas, ofegantes. E quedaram-se abraçadas. Macias, como bolas de arminho. E amei Maria do Céu. Pela primeira vez, o nosso acto de amor teve o sabor duma dádiva recíproca, onde para cada qual quem mais contava era o outro. Cada segredo dos nossos corpos foi desvendado pela sofreguidão dos nossos lábios. Das nossas mãos, fizemos sair harpejos duma doce música desconhecida. Enrolados um no outro, os nossos corpos serpentearam no dédalo dos sentimentos, mergulharam nos abismos da consciência, torturas e dúvidas alienadas na perdição dos sentidos.

Mais tarde, enquanto deitados de bruços na cama, saboreávamos um cigarro comum, Maria do Céu desculpou-se com o isolamento em que, não obstante os meus esforços, continuava. Seria sina sua, essa, a de percorrer o seu tempo só, por mais que um ror de gente marulhasse à sua volta? Nem sequer tinha sido diferente com Vítor. Fora só uma tentativa e daí não passara. Ah!... Se eu soubesse como é duro estar só!...

E eu quiz saber. Com ela fiz o trajecto que a conduzira de Rala ao "Borboleta Negra", corpo em trânsito de mão em mão, de boca em boca, de pénis em pénis, subalugado por grosso, pela dona da pensão, a taras indescritíveis, babado, emporcalhado, sujo, violado em todas as direcções, num carrossel estonteante. Com ela, vi por ela perpassarem, em corropio, novos e velhos, gordos e magros, cheirando a suor requentado ou à colónia mais cara, indivíduos desejosos dum depósito aprazível para mais uma ejaculação. E compreendi que, à força de hábito, uma parede se erguesse, pedra a pedra, argamassada em cada meia nota recebida das mãos da dona da pensão, entre o corpo e a alma de Maria do Céu. De um lado da parede, companhia a toda a hora e instante, anónimos compradores de disponibilidade insensível, feita de gestos mecânicos e inanimados; do outro, sensibilidade reduzida ao monólogo, força à deriva por falta de ponto de aplicação, crisálida adormecida e encasulada, com medo do exterior.

A tua mentira, Maria do Céu, aparecia-me agora, muito mais como fruto desse divórcio entre a essência de ti e a realidade, do que como uma intenção deliberada de me enganar. A delicadeza do gesto de amor em que te envolvi era, toda ela, fruto dessa compreensão. Tanto mais justificada quanto nos teus olhos pude apreciar, no momento em que os nossos sentidos se tornaram indistinguíveis, uma mescla de doçura inesperada e de angústia de criança perdida no meio dum arraial. E quando balbuciaste, a medo, quase como se temesses ofender-me, que me amavas, a recordação da mentira havia-se perdido nos confins dum universo a construir contigo, decidi então. E de lá não regressaria mais, Maria do Céu! Por minha vontade, jurei a mim mesmo, de lá não voltaria.

(continua)
Magalhães Pinto

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