(continuação)
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Nos tempos que se seguiram, dei muito mais da minha atenção a Maria do Céu. Fazia prodígios para compatibilizar as exigências da redacção com uma presença mais assídua junto dela. Passei a jantar com ela, também, numa corrida a hora incerta provocada por notícias sempre extemporâneas face às minhas necessidades. Não obstante a minha existência solitária desde há alguns anos, folheei todas as minhas agendas antigas, guardadas à força de deformação profissional, e reatei algumas das minhas relações passadas, com o objectivo de introduzir Maria do Céu no seio duma vida social. Pensava eu poder contribuir para a sua regeneração, iniciando-a nos rituais duma vida ridícula. Troquei o meu turno no jornal com um colega, de modo a ter livres as noites de sábado. Começou o corropio das feiras de banalidades, das quais fugira há alguns anos, depois do falhanço do meu casamento. Dois temores não eram suficientes para matar a minha crença no remédio. Um, o de que, entre as minhas relações, pudesse surgir algum dos velhos arrendatários do corpo de Maria do Céu, com evidente embaraço para todos; outro, uma sempre ameaçadora possibilidade, vagamente presente no meu espírito, de estar a abrir demasiado as portas da liberdade pelas quais se poderia escapulir, para sempre, Maria do Céu. Insisti, não obstante os meus medos.
Contrariamente ao que seria de esperar, face à sua evidente falta de cultura, Maria do Céu conseguia, não sem algum esforço às vezes, comportar-se à altura, participando das conversas com certa facilidade e muita ingenuidade, agindo a propósito sempre que a situação o exigia. À noite, antes de adormecer, divertíamo-nos a relembrar os pequenos erros por ela cometidos, com isso transformando, pouco a pouco, com a paciência dum cinzelador medieval, a pedra bruta de Rala, endurecida no submundo da cidade, numa espelhada cantaria afeita às convenções sociais.
(continua)
Magalhães Pinto
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