(continuação)
Recordo esse tempo, Maria do Céu, como dos períodos mais felizes da nossa intimidade. Sentia-te próxima, sentia-te grata, sentia-te amante e a descobrir, lentamente, uma felicidade para ti desconhecida. Mais tarde, viria a perguntar-me, algumas vezes, se tínhamos realmente vivido esse período, tão célere se escoou, para soçobrar na borrasca que se lhe seguiu, desvanecendo-se por entre as pregas de dúvidas e certezas destruidoras da confiança em ti e no futuro da nossa relação. Muitas vezes, sem que o notasses, fiquei a espiar, de longe, as cavaqueiras progressivamente mais desenvoltas nas quais te via participar. Nessas ocasiões, sentia a vaidade envolver-me. Aquela mulher em formação, que via desenvolver-se ante os meus olhos, era obra minha! Era como uma flor cuidada por jardineiro de eleição! A desabrochar, tímida primeiro, de caule forte depois, para estender as suas pétalas ao beijo dum sol por mim inventado. Quantas vezes, ao ver os homens em teu redor, bebendo os teus sorrisos com sofreguidão, tive ganas de gritar aí não se toca! Como um pintor perante a sua obra por acabar, fresca, com um bando de crianças mexeriqueiras à sua volta.
Uma tarde, na casa do Mindelo, achei ser tempo de ir mais longe. E se fôssemos a Rala um dia destes? Gostava de conhecer a tua terra. Um longo silêncio acolheu a proposta. Tens medo de lá voltar? Não tens tido notícias dos teus pais... dos teus irmãos... E nem eles sabem por onde andas... ou não é assim?... O ar pensativo de Maria do Céu dizia-me que a ideia estava a ser ponderada. Pelo menos, assim eu cria. Insisti. Argumentei em solilóquio, face à ausência de qualquer resposta. Era imperioso fazê-la voltar a Rala. A sua cura não seria completa sem enfrentar as aranhas do seu passado, sem destruir as teias que lhe empecilhavam o futuro. Iria lá, na minha companhia, como uma burguesa bem casada. De costas para mim, Maria do Céu olhava o mar ao longe, através das vidraças pardacentas da sujidade acumulada do lado de fora. O sobressalto dos ombros levou-me até junto dela. Parecia um soluço. Agarrei-a pela cintura e voltei-a para mim, lentamente. Chorava. Lágrimas de redenção, pensei eu. Chora, Maria do Céu. Chora. Lava a alma com o sal das recordações dolorosas. Mais consentindo do que concordando, aprazamos a ida a Rala para daí a duas semanas, aproveitando o feriado de segunda-feira, o que nos deixava o fim de semana livre na mesma.
(continua)
Magalhães Pinto
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