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3.7.07

CRONICA DA SEMANA

Por vezes, a realidade ultrapassa a imaginação colorida dos cronistas. E, melhor que alinhavar umas dúzias de pensamentos, geralmente geradores de diminutos efeitos, é dar a palavra a essa realidade, para que vejamos bem porque razão Portugal é um país subdesenvolvido. É o que faço hoje, dando a palavra ao Leitor C. A. R. S., docente universitário, consultor em gestão e sócio de uma empresa que, entre outras coisas, se dedicou à formação profissional com apoios do Fundo Social Europeu. É uma longa história. Por isso, e para não provocar dores de cabeça ao Chefe da Redacção deste nosso jornal na feitura deste, vamos dividi-la por duas semanas. Estamos certos de que tal história terá imensa utilidade para muitos dos nossos Leitores, os quais poderão tornar-se mais precavidos quando entrarem em relação com o Estado.

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"Somos uma empresa fundada em 1977, cujo objecto de actividade sempre foi a consultoria e formação em gestão. A nossa lista de empresas assistidas já ultrapassou as 300, desde nacionais a multinacionais, públicas e privadas. Em termos de formação profissional já foram ultrapassadas as 7000 horas ministradas.

Em 1988, para corresponder ao número de solicitações de empresas clientes interessadas em admitir empregados com especialização administrativa e informática, apresentámos ao FSE (Fundo Social Europeu) uma candidatura, propondo o desenvolvimento de uma acção de formação, destinada a 93 jovens à procura de primeiro emprego, com uma duração de 3 meses, envolvendo 10 "disciplinas", na maior parte sustentadas no uso da informática, a que denominámos "Técnicos Administrativos com Especialização Informática". Como – na altura – a acção era considerada de insuficiente dimensão para ser apresentada de forma isolada, teria de ser integrada num dossier conjunto, donde tivéssemos procurado uma entidade credenciada e prestigiada, a qual integrou a nossa acção num dossier conjunto, envolvendo algumas dezenas de outras empresas. O dossier conjunto foi aprovado, logo, envolvendo o nosso projecto, no total de 40.804 contos, pelo que à nossa empresa foi aprovado um apoio de 36.700 contos.

Será interessante referir que dos 93 formandos que iniciaram a formação, 86 acabaram a mesma, dos quais, após o estágio desenvolvido nas empresas, 79 ficaram empregados e com contrato sem termo, o que, convenhamos, constitui um rácio de grande sucesso. Acrescente-se que, 6 anos depois, tivemos conhecimento que 68 ainda continuavam nos quadros das empresas que os contrataram.

Como nota final, que julgamos relevante – em especial se nos situarmos no tempo em que esta formação foi desenvolvida – a nossa empresa acabou, no final da acção, por poupar 2.734 contos, logo, devolvendo-os ao DAFSE.

No entanto, o desenrolar deste projecto de formação registou contornos nada pacíficos. O primeiro surgiu já com a formação a decorrer há alguns meses, tendo o DAFSE (Departamento para os Assuntos do Fundo Social Europeu) informado que, "afinal", tinha havido um lapso de sua parte, e que o IVA (no tempo de 17%) não seria considerada despesa elegível, acrescentando, ainda, que, provavelmente, também não o seria pela administração fiscal, logo não dedutível no IVA periódico. Como se pretendia que a formação a ministrar correspondesse aos melhores padrões possíveis de qualidade e objectivos sociais, fomos obrigados a desenvolver um forte retrocesso financeiro, procurando recursos humanos e materiais isentos de IVA, ou, mesmo, cedidos gratuitamente, tendo-se conseguido, por exemplo: formadores (docentes) oriundos de um Instituto Superior de Lisboa; fornecedores retalhistas isentos de IVA; salas de trabalho cedidas gratuitamente por um Liceu nos arredores de Lisboa; aluguer, a preço simbólico, de dezenas de computadores, junto de uma empresa nacional que pretendia lançar uma nova marca; procura de editoras que cedessem, por preço muito reduzido, excessos de stocks de livros técnicos; etc..

Como se não bastasse, 6 meses depois do início da acção, o DAFSE informa que um razoável número de despesas, "afinal", não eram elegíveis. Tudo isto, quando já tínhamos assumido e pago os compromissos, donde um prejuízo superior a 4.000 contos. Apesar destes desaires, e juntando-os ao atraso na chegada de fundos por parte do DAFSE, mas admitindo que, face ao período já decorrido, a acção de formação seria para continuar, fomos obrigados a recorrer a um empréstimo bancário, obviamente com todos os encargos daí inerentes, e cujos custos sabíamos não iriam ser elegíveis.

Mas, para cúmulo, as coisas não ficaram por aqui. Em 2002 – 14 anos depois! – o DAFSE, agora Instituto de Gestão do Fundo Social Europeu (IGFSE), vem exigir-nos a devolução de 31.121, 57 euros (mais de 6.200 contos), porque, "afinal", e observado o dossier justificativo das despesas (incorridas, pagas e apresentadas), e mesmo considerando que a nossa empresa não gastou a totalidade do apoio concedido, alguns valores acharam como demasiados.

Dispensamo-nos de discriminar a totalidade dos argumentos usados pelo IGFSE, realçando somente os que consideramos de maior ridículo. Por exemplo, no que concerne ao material pedagógico, e embora tenhamos conseguido não ultrapassar a verba autorizada, o DAFSE entendeu que seria suficiente 215$62 (pouco mais de 1 euro) por formando, o que, já em 1995 só poderá ser qualificável de ridículo, valor que não chegaria para distribuir a cada formando (para 10 disciplinas) mais do que 40 folhas manuscritas, e nem agrafadas. Sim, porque os custos com trabalhos de dactilografia e preparação de manuais foram "cortados". Relembre-se, no entanto, que - mesmo não se tendo ultrapassado a verba autorizada - foi conseguido distribuir 12 livros técnicos a cada um dos 93 formandos, além de cópias de manuais e material apresentado em sala, muito desse material obtido por traduções autorizadas de obras estrangeiras (traduções feitas pelos orientadores e formadores a custo zero). Onde fica o espírito anunciado pelo DAFSE - "…a formação e qualidade profissional deve ser elevada, dotando-se os jovens portugueses, em busca de um primeiro emprego, de uma elevada formação…" - onde?

Também no que respeita a outras despesas com preparação da acção, o DAFSE, após se ter desentendido com a tal entidade credenciada e prestigiada, por razões a que somos alheios, corta o valor aprovado pelo acompanhamento dado pela mesma empresa, alegando que "o preço aplicado foi desajustado", como se tal fosse de nossa culpa, porquanto se tivemos de recorrer ao apoio da mesma empresa foi, unicamente, porque não fomos autorizados a apresentar o nosso próprio projecto.

Não ficando por aqui, o DAFSE "corta" os custos com diaporamas, vídeos, slide-shows e filmes técnicos, tudo argumentado como desnecessário, bem como operadores dos mesmos, porquanto, se hoje são vulgares, o mesmo não se pode dizer da década de 80, suportes cuja tecnologia ainda não era dominada pelos formadores e docentes, mesmo universitários (na altura, nas aulas dadas na Universidade, um simples retroprojector era equipamento não disponível).

Em orientação profissional, foi cortada a parca verba dispendida com o acompanhamento dos 86 formandos em estágio durante alguns meses, talvez pretendendo o DAFSE que, após a formação, os formandos recebessem uma guia de marcha e fossem deixados à sorte junto das empresas que os acolheram (e que, na maior parte, os empregaram).

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Na próxima semana, concluiremos esta história "edificante". Sobretudo, porque mostra a distância que vai entre os discursos inflamados para impressionar o patego e a dolorosa experiência da burocracia cega e inoperante.

Crónica CHOQUE TECNOLÓGICO (I) - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 4/7/2007

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