(continuação)
Sentei-me à secretária. A fadiga, passada que fora a tensão da procura, apoderou-se de mim. Reclinei-me para trás. Fechei os olhos. A dúvida era, agora, abstracta. A imaginação tinha-se escoado, como água cristalina, no coador da verdade conhecida, sem nada esclarecer. Senti desejo de voltar atrás e esmagar, como se esmaga uma aranha peçonhenta, este meu feitio de querer uma justificação para todas as coisas. Ingénuo, eu não percebera, até então, o essencial: a razão dum comportamento humano, a razão profunda, não aparente, é invisível do exterior; apenas pode ser plenamente entendida pelo agente desse comportamento. Os outros, os espectadores, os que estão para além do muro separador existente entre a alma e os gestos, não podem senão fazer aproximações. Ingénuo, eu não percebera, até então, que, para entender perfeitamente o comportamento de Maria do Céu, como de qualquer outra pessoa, seria necessário ter-lhe vivido a própria vida, dum modo completo, sem desperdiçar nenhum momento. Como podia eu, nado e criado numa grande cidade, embora provinciana, entender completamente o comportamento de alguém cujos primeiros anos de vida, os artesãos do carácter, os escultores do temperamento, os pintores da personalidade, haviam decorrido no micro-cosmos duma aldeia perdida nas cartas militares? Como podia eu, agnóstico por excelência, entender completamente o comportamento duma alma cinzelada pelo escopro inflexível da religião? Como podia eu, aos doze anos de idade já sabedor de ser uma boa treta essa história das cestinhas vindas de França recheadas de bebés, eu que, pelos dezasseis anos, já salvaguardava os trocos todos, até juntar os vinte escudos necessários a uma rápida fornicadela com as prostitutas do Palácio, entender completamente o comportamento de alguém, cuja primeira consciência do fenómeno sexual fora uma espreitadela, furtiva e culposa, pela frincha do quarto dos pais. Como podia eu, cuja virgindade fora acolhida pelos gemidos de prazer duma serviçal meio estúpida na cama dos meus pais, entender alguém cujo primeiro acto sexual não fora, real ou fingidamente, participado, mas sim roubado? Como podia eu compreender alguém que tinha feito do corpo, servido diariamente, horariamente tantas vezes, na espadela de camas a tresandar a suor e a esperma, a enxada do seu milheiral. Alguém, cujo corpo fora apalpado, revirado, explorado, esventrado, por mãos que pegavam lascivamente no sexo, como se pega na caneta que assina os cheques duma conta bancária recheada. Bolas! Como se pode ser juiz assim? E, no entanto, eu estava a brincar aos juízes, ao apreciar Maria do Céu. Vestindo a toga da minha incompreensão e usando o capelo da minha razão míope.
(continua)
Magalhães Pinto
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