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10.7.07

A DUVIDA - 119º. fascículo

(continuação)

Julgava ter já acontecido tudo, Maria do Céu. Mas aquele era o meu dia de beber, até à última gota, a taça de fel que a cada um a Vida reserva. Por ironia, é com a destruição de qualquer possibilidade de prosseguirmos um caminho comum que nasce toda a minha confiança em ti. Pela segunda vez - a primeira foi quando me contaste a história da tua juventude, lembras-te? - a tua alma surgia, ante mim, tão despida como quando fazias amor comigo. O modo como falavas, arrastado, vagaroso, palavras escorropichadas lentamente dos teus lábios, como um lubrificante depois de cumprida a função, puxava arduamente a minha compreensão, numa aceitação renitente, mas não incrédula, para os abismos da desilusão e do desespero.


Porque não sei quem é o pai... A frase de Maria do Céu estoirou-me nos tímpanos como uma granada de morteiro- Não porque esperasse ser eu o pai. Não esperava. Mas porque ela correspondia a algo nem sequer existente na minha imaginação. Maria do Céu admitia a possibilidade de ser outro que não eu. Como, Maria do Céu?... Onde?... Quando?... Com quem?... Que aconteceu que eu não saiba?... Foi algum engate de ocasião, nessas tuas saídas pela cidade?... Voltaste à vida antiga?... Não te chegava eu?... Gostaste assim tanto da dança que foi necessária uma orquestra para te contentar?... De quantos instrumentos precisas tu, Maria do Céu, para te acompanhar no fado?... Já não tinha domínio sobre o que dizia. Queria fazer dos meus pensamentos espetos nos quais ardesse, para sempre, a sua consciência. Queria fazer das minhas palavras facas que a retalhassem.

Não tinha sido nas andanças pela cidade, não. Paris, a minha cidade amada, traçara involuntariamente o caminho que nos levaria á destruição, num daqueles acontecimentos apenas concebidos pela imaginação do destino. Durante longos minutos, no silêncio do túmulo que me sorvera, ouvi a descrição de Maria do Céu, acontecimentos a agrilhoarem-me, a magoarem que nem pregos cravados na palma da mão.

(continua)
Magalhães Pinto

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