(continuação)
Isso deveria chegar para darmos tanta atenção aos bens materiais como aos bens do espírito. Mas a nossa experiência conta que não é assim. Ao desenvolvimento das condições materiais da vida do Homem opõe-se a sua desumanização, a sua aculturação. As nossas diferenças, que fazem muito da nossa riqueza, esbatem-se.
Se eu tenho razão, então muita força havemos de fazer para preservar a nossa cultura. Uma cultura assente na Língua Portuguesa. E não se me chame chauvinista. Tenho plena consciência de que a cultura assente na Língua Portuguesa extravasa, em muito, a elaborada por este pequeno povo acantonado na extremidade ocidental da Europa. Por força de um destino comum, essa pequena cultura inicial colheu matizes de tantas outras civilizações que a engrandeceram, que a coloriram, que lhe deram relevo. Por força de uma saga da qual todos os que falam Português seguramente se orgulham, essa cultura deixou de ser europeia, para ser universal. Não tenho qualquer pejo em afirmar que sinto na alma as raízes africanas da minha cultura. Como sinto as raízes americanas. Como sinto as oceânicas. Não consigo ver num africano, num brasileiro, num timorense, outra coisa que não seja um irmão. Apesar de chamar aos vizinhos espanhóis "nuestros hermanos", não os sinto sequer tão próximos como o Mamadú que conheci na Guiné. Nenhum apelo da Europa consegue apagar esse meu sentimento. E, por senti-lo, sei ter uma força que vai além de ser português, de ser europeu. Seria trágico para mim se assim não sentisse. Estaria a renegar-me a mim próprio. Estaria a diminuir a cultura de que sou um átomo. Seria apenas um mais perdido na amálgama indiferenciada e aculturada.
De igual modo, e na minha opinião, seria trágico - porque perdida seria a oportunidade suprema de afirmar uma cultura vigorosa con tonalidades universais - seria trágico para os novos países de expressão oficial portuguesa, renegarem os quinhentos anos de vida em comum que construimos. Como teria sido para os brasileiros, se o tivessem feito. Que se me perdoe a pequenina vaidade de algo de que até nem terei sido - não teremos sido nós, os Portugueses - os principais obreiros. Mas acho que essa imensa pátria que é o Brasil, unida, pacífica, enorme, continental, cadinho de fusão de tantas outras culturas que nele se dissolveram, só é assim porque quis o destino e a vontade dos homens que ali ficasse impregnada a maneira de ser de um povo pequeno na dimensão, mas enorme na alma, vindo lá da Europa quando a Europa o não queria. Penso sinceramente que as heranças não se recusam. Sob pena de se ficar condenado a uma imensa e eterna pobreza.
E, agora sim, vejo com clareza a alternativa que temos diante de nós. Ou recusamos a nossa herança comum - pluricultural e pluriterritorial - e perder-nos-emos na amálgama do futuro. Ou aceitamo-la, promovêmo-la, excitámo-la, desenvolvêmo-la, e conquistaremos um papel importante no seio da comunidade global do futuro, já em gestação. Nobre papel esse, no seio da globalização desumanizante, o de preservar uma cultura que, quer o Mundo queira quer não, construiu muito do seu futuro. Uma cultura pacífica, laboriosa, amante do seu semelhante, sem laivos de racismo, encontrando na diferença o cimento para construir comunidades solidárias.
Falta saber se os homens terão a grandeza de alma suficiente para reconhecer que assim é. Ou se se esvairão na procura do que os desune e os afunda numa globalização que, trazendo alguns benefícios, está a destruir o que de melhor trazíamos do passado. Falta saber se havemos de ter tempo para ver o caminho.
FIM
Extracto de uma conferência com o mesmo título - Magalhães Pinto
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