(continuação)
Pobre Mário! Em Portugal, em meados dos anos sessenta, não há quereres. Cada um faz o que lhe mandam. Numa sociedade dividida, as divisões gozam da propriedade distributiva, afectam todas as parcelas. Assim, há sempre duas classes, a dos que querem e a dos que fazem. Com a particularidade de querer ser poder.
Nessa noite, em casa de Mário, as luzes apagam-se mais tarde. Curiosamente, nenhum barulho lá de dentro transpira cá para fora. Pelos cantos há quem chore baixinho. A tia. O irmão. A mãe de Mário está ainda sentada à mesa, ensimesmada, lágrimas a correrem-lhe cara abaixo, silenciosamente, sem soluços. A notícia sobrepõe-se a toda a realidade. É como se o tempo tivesse parado. O pai fuma um cigarro nervosamente, sentado na cadeira de braços, junto à janela. Não quer confessar, mas a sua crença no Estado Novo, de que sempre fizera gala, e a sua condição de fiel legionário, com emblema na lapela e tudo, encontram-se profundamente abaladas. Salazar deve ter acabado de perder um apoiante. Se isto assim continua, ainda os perde a todos. Falta ainda a noiva. Mário não quer dar-lhe a notícia pelo telefone. Pode bem esperar para amanhã. Sempre será menos um dia de sofrimento. Sempre será de menos uma noite mal dormida das noites que aí vêm.
(continua)
Magalhães Pinto
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