Pesquisar neste blogue

5.9.07

OS HERÓIS E O MEDO - 17º. fascículo

(continuação)

Raramente ficava no quartel de noite. Comandante trabalha no quartel, não vive lá. Mas naqueles tempos de boatos constantes sobre golpes de estado, as prevenções sucediam-se ao ritmo das luas. Não havia mês sem duas ou três noites daquelas. Os comunistas estavam particularmente activos desde o início da guerra, em Luanda. O quartel transformava-se em casa de reclusão. Ninguém saía. A guarnição tornava-se prisioneira de si mesma. E do emaranhado das informações conseguidas sabe-se lá como. Provavelmente pela polícia política. O mínimo a fazer era dar o exemplo do sacrifício, ficando também. A obediência cega, tão necessária lá fora, nas províncias, não se conseguia só à custa do regulamento. Para ser cega precisava do respeito como venda. Com o exemplo a servir de atilho. Fora sempre desse modo que ele conseguira conduzir os seus homens a fazer impossíveis. Como no início daquela guerra, há um par de anos. No tempo dos canhangulos e das catanas, das Mäuser e das baionetas. Guerra pré-histórica em tempo de mísseis atómicos. Quanto sacrifício, meu Deus! Marchas de semanas em picadas e trilhos de mato. Aldeias semi-queimadas com os cadáveres já em decomposição, esventrados, rotos, profanados. Cibes derrubados a atravancar as estradas. Arrastados para a margem por músculos afeiçoados à enxada. A curva seguinte abordada lentamente, à espera dum inimigo eternamente invisível. O súbito guincho dum símio a servir uma dose maciça de adrenalina, conduzindo o coração a acelerações impossíveis. Em cada povoação, o terror de imagens dantescas. E aqueles homens, atrás de si, confrontados com a evidência de que nem só os bois se abatem daquele modo. Em alguns, golfadas de vómito ao ritmo das pazadas piedosas no enterro das vítimas. Para logo prosseguirem, sem desfalecimento, picada fora, no silêncio pesado de quem se sente testemunha daquilo que não compreende. Mortos de sede. Mortos de cansaço. Moralmente mortos ao descobrirem a existência de um mundo assim, espécie de matadouro. Até à povoação seguinte, onde o filme seria o mesmo. Terem respondido ao terrorismo com terrorismo, ajudara. Uma cabeça amputada por cada mulher violada. Uma casa incendiada por cada mina explodida. Uma aldeia arrasada por cada morto em combate. Tinham sido tempos para esquecer. Tentava arrumar, no arquivo morto da memória, a primeira comissão de serviço, tantas tinham sido as barbaridades com as quais houvera de pactuar e às quais fechara os olhos. Felizmente, as coisas estavam a mudar. A preocupação maior era já a acção psico-social, numa tentativa de recuperação das populações, assustadas pela tempestade subitamente desabada sobre as suas cabeças. Não obstante uma ou outra acção de combate mais perigosa, a guerra tornara-se agora rotineira. Saídas às cinco da manhã. Recepção dos morteiros inimigos à uma da noite.

(continua)
Magalhães Pinto

Sem comentários: