(continuação)
Malditos pés, inchados. Aliviou os cordões das botas e sentou-se à secretária, algo tosca, desarrumada a um canto do quarto. E folheou distraidamente os papéis, trazidos pelo ordenança ao fim do dia. Ainda não pegara neles desde então. Tinha a noite toda para o fazer. Não conseguia dormir mais do que duas ou três horas em noites de prevenção. Sobrava-lhe tempo para pôr algum expediente em dia. Entre os papéis, encontrou uma participação. Do responsável pela messe dos sargentos. Outro com a mania de que a ordem se defendia à custa do regulamento. Uma chatice, pensou consigo mesmo. Não gostava de indisciplina, mas custava-lhe ter que castigar alguém. A maior parte daqueles rapazes iria acabar no ultramar e era olho de alvo para qualquer bala perdida. Um sacrifício à altura da sua generosidade. Chegava bem para castigo. Leu a participação atentamente. Na sala de refeições dos cabos milicianos tinha havido sarilho. Aliás, numa das salas. Na outra tudo tinha estado calmo. Pelos vistos desagradados com a alimentação servida, tinham-se recusado a comer e, para agravar as coisas, tinham, selvaticamente dizia o participante, despejado o conteúdo das travessas em cima das mesas. Esta juventude já não respeitava nada. Afinal, a filha estava no seu tempo. Não! Não podia pensar assim. Já tinha visto esta mesma juventude ser heróica. Viver em tocas feitas de bidões com a alegria de quem está num palácio. Comer esparguete com esparguete ao almoço e ao jantar, sem que se lhe ouvisse um queixume. Ainda bem. Era uma hora em que a Pátria precisava da juventude mais do que nunca. Em casa, eram rebeldes. Da porta para fora, dóceis como ovelhas. Despachou para o segundo comandante, pedindo um inquérito rápido e discreto. Não queria barulho sobre o assunto. Prejudicava a imagem do quartel e dos oficiais, acima de tudo a dele. E podia servir de exemplo, mau exemplo, para outros. O tratamento destas situações tinha que ser rápido e exemplar. Talvez dez ou vinte dias de detenção, a um ou a dois, resolvessem o caso. E atemorizaria. O acumular de penas conduzia inexoravelmente à despromoção e à mobilização imediata. Ironicamente, o Poder assumia, nestes casos, que servir a Pátria podia ser castigo. Também ninguém se importava com isso. Não fazia muita diferença fazer a guerra como soldado ou sargento. Os galões não assustavam bala de terrorista. E o conceito de Pátria, em África, era diferente. Subordinado ao instinto de conservação.
(continua)
Magalhães Pinto
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