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2.5.07

A DUVIDA - 54º. fascículo

(continuação)

IX

Preparei, cuidadosamente, o fim de semana no Mindelo. Sempre gostara daquela tranquilidade das tardes de inverno, disfrutada na casa pré-fabricada que comprara, há quase dois anos, a um veraneante de Felgueiras, entediado pela falta de animação. Quase sobre a praia, exposta aos ventos do noroeste, propiciava-me a serenidade necessária ao fluir dos meus escritos. Preferia estar só, ali, a deambular no meio das estátuas em imitação de gente que se arrastavam penosamente na cidade. Caladas. Paradas, na sua correria fixada no passeio. Sem um olhar de carinho ou sorriso de ternura. Gélidas, como o vento norte do princípio da tarde, diariamente presente, ali, no Mindelo. Mas o vento norte, ao menos, fosse ou não com violência, ainda me acariciava. Nas marés vivas do S. Bartolomeu, a nortada chegava a pegar em pedaços de espuma salgada e a trazê-los até aos meus lábios, como se quisesse obrigar o mar a beijar-me. Se o mar estava chão, deixava-me embalar nos assobios do vento, a roçagar as arestas da penedia, a lamber o areal, arrastando consigo um contínuo e ondulante véu que, em pregas imperceptíveis, se ia enrolando, enrolando, noite fora, até ser, com a acalmia matinal, uma doirada duna a orlar as bordas da casa. Por alturas dos equinócios, o habitual suspiro das ondas, a finarem-se lá mais abaixo, transformava-se em rancoroso estertor de moribundo, revoltado pela ânsia de vida que lhe é negada. Nessas ocasiões, despertavam em mim insuspeitos e bravios instintos que se esvaíam num ímpeto criador indominável. Então, todas as minhas necessidades primárias desapareciam, para ficarem apenas, em simbiose perfeita, a mente, a mão e o lápis, enchendo, enchendo sempre, horas a fio, as folhas do bloco onde os meus pensamentos, ganhando vida, se tornavam materiais, corpóreos, visíveis.

Desta vez, tinha uma diferente justificação para desejar a quietude do Mindelo. Passara o resto da semana atormentado pela mentira de Maria do Céu, sem a coragem duma abordagem directa, no temor de a ver sair porta fora, para nunca mais voltar. O que agora, com a consciência do que ela representava para mim, se me afigurava insuportável. Como fardo se tornara, para mim, a dúvida, cuja eliminação passara a ser imperiosa, depois do estupor inicial da consciência enganada. O Mindelo e a sua tranquilidade apareciam-me, assim, como a tábua de salvação para superar aquela contradição desesperante. Dois dias seguidos de intimidade, feita de meiguice e compreensão, seriam a alavanca ideal para forçar, um pouco mais, a frincha já aberta na sua alma e para fechar a brecha da dúvida a estalar em mim.

(continua)
Magalhães Pinto

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