(continuação)
Aquela ideia de te levar a Rala, Maria do Céu, foi uma tolice. Bem intencionada, mas tolice. Eu sentia ser Rala o teu calvário pessoal. Mas não me apercebera de quão profundamente o acontecido ali te tinha destroçado. Se o tivesse sequer pressentido, nunca teria tido essa ideia, sobretudo naquela ocasião, quando os traços do teu passado, as sequelas do teu drama, se me afiguravam estar paulatinamente a esbater-se. Hoje, preciso que me compreendas, Maria do Céu. Quando a tua mãe, desabridamente, aos gritos de desgraçada, nos recebeu à porta, corpo franzino impedindo a nossa entrada, a minha dor foi, talvez, maior do que a tua. Para ti era o repúdio da família por parte daquela que nela mais amavas. Era a censura escancarada do caminho escolhido por ti mesma, cuspidela numa alma que, nesse momento, provavelmente não desejava senão um pedaço de compreensão. Mas para mim, para além do escárnio por tudo quanto eu tinha feito de ti, até então, para além da ofensa à mulher que eu trazia no coração, era uma primeira página de jornal estampando, a toda a largura, uma acusação de insensibilidade. Para mim, era uma bofetada injusta na consciência de estar a dar ao mundo, secretamente, uma lição de amor ao próximo despida de preconceitos. Sofri, tanto ou mais do que tu, naquele dia, Maria do Céu. Se é que se pode fazer uma afirmação destas. Que sabemos nós do sofrimento íntimo dos outros? Pensamos, a cada passo, concentrar em nós todo o sofrimento da humanidade, sem pararmos um momento para olhar em nosso derredor. Esquecendo que o sofrimento mais penoso é aquele que se não vê, que se não nota.
Regressámos de Rala tristemente. Quase não falámos, na camioneta. Maria do Céu chorou todo o tempo. E eu, habitualmente tão cheio de ideias, não encontrava uma, uma só que fosse, capaz de lhe atenuar a tristeza. Nessa noite, adormecemos abraçados um ao outro, como duas crianças abandonadas num portal da grande cidade.
(continua)
Magalhães Pinto
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