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9.5.07

MEMORIA


Os computadores são uma das criações mais brilhantes do Homem no último século. "Inteligentes" e diligentes, fazem muito do trabalho que ao Homem competia antes do seu aparecimento. Não se cansam. Não se queixam. Não reclamam. Não discutem. Não se enganam. Não têm dores nas costas nem noites mal dormidas. Na realidade, até nem dormem, se for preciso. Não ficam grávidos. Não discutem futebol nem lêem jornais quando os mandam trabalhar. Não lutam por contratos colectivos. Não se apercebem do que é a inflação. Tanto se lhes dá qual é a taxa de juro. Basta bater uma tecla para aceitarem qualquer taxa que o Banco Central Europeu tenha determinado. São apartidários. Tão bem se dão no escritório do senhor doutor Paulo Portas como no do senhor doutor Francisco Louçã. Já não há Salazares; mas, se os houvesse, servi-los-iam com a mesma dedicação que dão ao maior democrata. Permitem-nos estar em contacto com toda a informação do mundo. Desde a descoberta da vacina contra o vírus mais violento até às formas de copular mais bizarras. Os computadores são, definitivamente, os mais fiéis e leais amigos de quem manda. Tudo quanto requerem é serem programados. E são-no sempre tendo em vista a produtividade, a rapidez e a eficiência do seu trabalho.

Não admira, assim, que a sociedade actual procure ampliar o conceito. Não sei se algum detentor de Poder pensou já que a sociedade perfeita, pelo menos do ponto de vista dos detentores de Poder, seria uma sociedade em que apenas houvesse computadores. Mas se não pensou, a ideia está-lhe no subconsciente. Por várias razões. Em primeiro lugar, o seu Poder seria eternizado. Em segundo lugar, poderiam aumentar os impostos até ao ponto desejado, sem nenhuma perturbação social. Em terceiro lugar, poderiam mandar às malvas o que resta de Saúde e Segurança Social. E, por fim, não tinham que se haver com "garotadas" como, por exemplo, o entendimento entre dois líderes da Oposição. Aqui, sobretudo, porque não haveria Oposição. Assim, é perfeitamente compreensível que os detentores do Poder, embora não podendo fazer de cada um e de todos um computador, não se poupem a esforços para transformar tudo e todos em computadores. Usando, para tal, o instrumento privilegiado que a Escola é. O nosso sistema de educação (educação?) está concebido não para construir cidadãos, mas sim para produzir computadores. Uma tragédia, se não se arrepiar caminho.

Durante séculos, e com raras excepções, a educação das crianças e dos jovens coube, equilibradamente, à Família, à Escola, à Igreja e à Sociedade. Cada cidadão era, ao chegar a adulto, o produto da interpenetração dessas influências. A parte final do século prestes a findar – aproximadamente o período que se seguiu à Segunda Grande Guerra Mundial – esboroou o sistema de educação. A Família perdeu as bases sólidas em que se fundamentava. A estabilidade, o respeito, o amor. A Mulher, num justificado mas prejudicial movimento de emancipação, saiu de casa. A educação dos filhos no seio da Família entrou num irreversível apagamento. Os pais, absorvidos na procura dos bens materiais associados à ideia de bem-estar, abandonaram a sua função educativa. Com a agravante de as crianças serem cada vez mais cedo entregues ao cuidado da Escola. Hoje, os filhos saem de casa aos três, quatro, meses de idade. Para grande parte das crianças, a casa familiar é apenas um dormitório. A influência educativa da família já quase só é uma figura histórica. Uma falência neste final de século.

Admitamos que tal é uma necessidade do progresso. Seria de elementar bom senso que a Escola fosse orientada no sentido de suprir a falta dessa componente essencial da educação que a Família sempre foi. Mas não é a isso que assistimos. Com muitos professores mal preparados, com ainda mais não vocacionados para a função educativa, tendo por obrigação o cumprimento de programas de ensino – que não de educação – vastíssimos, tendentes a transformar cada pessoa num computador, carente de dinheiro suficiente para uma formação relativamente eficaz, abandonada pelos pais que, na sua maioria, se estão nas tintas para o que lá se passa, a Escola não pode suprir a função educação que devia caber-lhe. Se não houvesse hipocrisia, o Ministério das escolas chamar-se-ia do Ensino e não da Educação. E nenhum Primeiro-Ministro diria que estava apaixonado por ela, mas apenas que com ela copulava quando lhe desse jeito. Apregoam os detentores do Poder o seu amor à Liberdade, mas é precisamente onde tal amor devia ser responsavelmente inoculado – a Escola – que a Liberdade mais ausente está. Um burocrata sentado numa secretária do Terreiro do Paço pretende saber mais do que convém aos alunos duma escola perdida nas faldas da Serra da Estrela do que o professor que foi para lá desterrado e que, com dedicação, procura cumprir o melhor que sabe a tremenda responsabilidade que colocaram nos seus ombros. A Escola, tal como está concebida e tendo por necessidade suplementar suprir a carência da educação familiar, é uma falência neste fim de século.
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Excerto da crónica A GERAÇÃO DOS COMPUTADORES - Magalhães Pinto - "Vida Económica" - 21/10/2000

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