. . . OS SINAIS DO NOSSO TEMPO, NUM REGISTO DESPRETENSIOSO, BEM HUMORADO POR VEZES E SEMPRE CRÍTICO. . .
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4.9.07
CRÓNICA DA SEMANA (II)
Hoje trago-lhe uma epopeia, meu Caro Leitor. Que seria digna de um filme para rir se não fosse dramático e não causasse prejuízos assinaláveis a quem se viu envolvido na tragicomédia. Uma história a que nenhum “simplex” resiste. Um indicador de como as intenções mais generosas para o nosso país naufragam no mar da burocracia estúpida. Uma nódoa indelével no esforço de modernização do país. Um relógio que transforma a “empresa na hora” numa infindável via sacra de um calvário inultrapassável. Eu conto.
RNPC é a sigla do Registo Nacional das Pessoas Colectivas. Um, entre tantos, departamento do Estado cuja função é a de que não exista qualquer possibilidade de confusão entre instituições. Nome de ente colectivo é único. Entre os indivíduos, pode haver milhares de Antónios Pinto, dezenas de milhar de Josés Silva. Nas instituições, não. Lá está o RNPC a velar por isso. E não há fuga. Quem quer que seja que decida criar um ente colectivo e baptizá-lo como convém tem que passar pelo RNPC. O qual, segundo critérios que vamos já apreciar em pormenor, tem o dom de acelerar ou retardar o nascimento. Admito mesmo que, com experiências como a que aqui vou contar, o RNPC possa ser um poderoso abortivo do são nascimento de um qualquer ente colectivo. Como todos os mortais com idênticas intenções, aí se dirigiu o candidato a criador. O objectivo era singelo. Criar uma associação que desse cobertura ao surgimento daquilo que se chama uma universidade para a terceira idade. Num tempo de facilidades cibernéticas, recorreu à Internet para solicitar a correspondente autorização ao RNPC. Ficou impressionado. Estava tudo muito organizadinho. Passo a passo, foi guiado na elaboração do correspondente pedido de admissibilidade para o nome da brevemente recém-nascida instituição. SABER – Universidade Senior Lions de Matosinhos. No objecto, escarrapachadinha, a indicação do género de associação de que se tratava. Era o dia 16 de Junho de 2007. Cinco da tarde. Na página do RNPC notícias animadoras de qualquer inimigo da burocracia: cinco dias depois de pago o requerimento era o prazo normal de deferimento ou indeferimento. Foi logo pago. Ia ser canja. Podia lá ser haver alguma outra instituição com aquele nome? A espera ia ser breve. Mesmo a jeito para quem pretendia colocar a instituição a funcionar em Outubro próximo.
Os dias foram escorrendo. A decisão surgiria, em primeira mão, na própria Internet. Depois lá viria a carta formal para casa, com selo já pago pelo requerente. A 21 de Junho, a desilusão chegou, via internet também que o RNPC é todo “simplex” nos aspectos formais. No resto é que é “complex”. Indeferido. Sem mais nenhuma explicação. Havia que esperar que chegasse a carta formal. E a explicação lá vinha. Datada de 33 de Junho. Tinham passado só dez dias com o prazo dos correios incluído. Duas razões para o indeferimento. Por um lado não era especificada, na designação social, a natureza associativa da entidade. Razoável. Segunda razão, a designação confundia-se com LOJA DO SABER – ASSOCIAÇÃO PARA A PROMOÇÃO DOS SABERES CIÊNCIA E TECNOLOGIAS PARA O DEWENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL. De abrir a boca como não nos tínhamos apercebido da confusão possível. Compare o Leitor com o nome. Deixa lá o requerimento morrer pendente e vamos a outro. E pediu, em novo requerimento, autorização para o nome ASSOCIAÇÃO CULTURAL “FLORBELA ESPANCA” e mais duas alternativas. As aspas queriam significar que Florbela Espanca estava ali como podia estar José Silva. E lá foi. Surpresa! Foram rápidos. E, no dia 16 de Agosto, a almejada notícia sobre o novo requerimento surgia espampanante na Internet. TINHA SIDO DEFERIDA A DESIGNAÇÃO! Alvíssaras! Alegria! O Rubicão tinha sido ultrapassado! A notícia foi anunciada. Os artistas começaram a trabalhar o material de promoção da nova instituição. Criar logótipo e todos os artigos que iam servir à publicidade. Os futuros sócios foram alertados para a aprovação, Começaram-se as diligências para a constituição da entidade desejada. Restaria agora aguardar a desejada carta formal a confirmar o que havia sido dito na Internet para avançar.
Um absurdo do tamanho do Mundo chegaria uns três dias depois. Relativo, note bem Caro Leitor, ao primeiro dos requerimentos. O RNPC dizia, em carta, que não dispensava a prova de legitimidade para o uso do nome de Florbela Espanca. E que essa prova era constituída por “autorização dos herdeiros de Florbela, CASO ESTES EXISTAM, e prova da legitimidade dos herdeiros através de habilitação de herdeiros” (sic). Repare-se que, nos precisos termos em que estão redigidas estas condições, as mesmas significam uma impossibilidade absoluta de satisfazer o exigido. Não se pode provar a existência ou não existência do que se não sabe se existe. O requerente ainda estve tentado em fazer uma afirmação arriscada. FLORBELA ESPANCA NÃO TEM HERDEIROS! Mas admitiu que isso ia colocar o senhor feudal que mora no RNPC em dificuldades e aumentar a inutilidade de certos custos para o erário público, com o dito senhor a procurar o que não sabia se existia. Como a exigência dizia respeito a um pedido que já tinha abandonado e como já tinha o “FLORBELA ESPANCA”, com aspas, deferido, preferiu não dizer nada, a bem da nação. E continuou à espera da amada carta que confirmaria o deferimento anunciado na Internet pelo RNPC.
Esperou, esperou, esperou. E como a desejada carta não chegava, no dia 29 de Agosto voltou á Internet, para ver se não tinha sonhado. E não é que tinha sonhado mesmo?! Aquilo que estava deferido em 16 de Agosto tinha passado a pendente. Já era amor aos pendentes por alguém do RNPC. Era ilegitimidade. Era um disparate. Era um desprezo absoluto perlo tempo, pelo interesse social, pela boa-fé, pela dedicação de uns carolas – LIONS CLUBE DE MATOSINHOS, CÂMARA MUNICIPAL DE MATOSINHOS E ASSOCIAÇÃO EMPRESARIAL DO CONCELHO DE MATOSINHOS, que esses eram os promotores da instituição a criar – que apenas queriam ser úteis à sua comunidade.
Uns dias depois disto, com data de 23 de Agosto mas muito mais tarde, lá surgiu uma nova carta do RNPC a pedir, agora para o segundo requerimento, “prova da legitimidade do uso do nome Florbela Espanca”. O requerimento lá continua. À espera que não sei quem acorde bem disposto e disponível para ajudar a funcionar o país. Entretanto, há incredulidade. Há impotência perante os desmandos. Há custos inúteis. Há tempo perdido. Há paciência esboroada. Há país atrasado. Há (muita) indignação. Já lá vão quase três meses desde que começou a odisseia. Uma odisseia que tem pelo meio um requerimento aprovado primeiro e desaprovado depois. Uma odisseia que pede uma autorização de quem não se sabe se existe e de quem se pede ainda uma prova de legitimidade baseada numa escritura de habilitação de herdeiros. Uma odisseia que deixa no espírito uma pergunta insidiosa: não há por aí um governante que meta na ordem a feira de disparates em que o RNPC está transformado e faça dele um organismo sério? E, se não houver tal governante, não há por aí pelo menos um polícia que meta os responsáveis por este absurdo burocrático na cadeia?
Crónica RNPC OU A FEIRA DOS DISPARATES - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 6/9/2007
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